A nossa casa é o mundo
Sempre que vou a Amesterdão visito religiosamente, nas margens do Amstel, um fragmento importante da presença dos portugueses no mundo. Além da imponente Sinagoga, o cemitério de Ouderkerk constitui memória viva de uma presença forte e comovente. Falo de Beth Haim, que significa literalmente Casa de Vida, o cemitério dos judeus portugueses, fundado por Isaac Franco Medeyros, em 1614. É um campo santo que recorda a tentativa do Padre António Vieira de fazer regressar a Portugal o poder económico e a influência dos portugueses que tiveram de partir para onde havia o reconhecimento da liberdade de consciência, nos Países Baixos, graças às leis da União de Utrecht de 1579.
As campas que se encontram em Ouderkerk albergam portugueses ilustres: Filipe Elias Montalto, de Castelo Branco, médico pessoal de Maria de Médicis, o célebre autor da Arquipatologia, recentemente comentada por Adelino Cardoso, Helder Macedo e Maria Filomena Molder, num belo livro sobre a melancolia; Isaac Oróbio de Castro, de Bragança, também médico e filósofo; Menasseh ben Israel, aliás Manuel Dias Soeiro, da Madeira, o rabino imortalizado por Rembrandt e primeiro impressor de livros em hebraico em Amesterdão; Isaac Aboab da Fonseca, de Castro Daire, um dos mais proeminentes rabinos no século XVII, mais tarde o primeiro das Américas, dirigindo, a partir de 1641, a nova comunidade judaica de Recife, Pernambuco, donde sairiam os fundadores de Nova Amesterdão, hoje Nova Iorque; Jacob de Aharon de Sasportas, rabino e cabalista; Michael de Espinoza, pai do filósofo Baruch Espinoza; David Franco Mendes, cultor da língua hebraica; Abraham Israel Suasso ou Francisco Lopes Suasso, de profissão banqueiro; Moses Curiel, aliás Jerónimo Nunes da Costa, mercador e agente do rei D. João IV... Nas identificações constantes das pequenas placas do cemitério, descobrimos, a cada passo, quem se destacou e constituiu referência para os dias de hoje.
Não é possível compreender a riqueza e o caráter aberto e multifacetado da cultura portuguesa sem considerar todos quantos fizeram da liberdade de pensamento e do culto das diferenças marca da sua própria identidade, lembramo-nos ainda de Garcia de Orta, de Damião de Góis ou de António José da Silva. São exemplos que deram testemunho vivo de vitalidade e de sentido de futuro.
Os textos de Vieira, que acompanharam a sua ação diplomática, são bem ilustrativos da exigência da abertura de espírito e de inteligência na reflexão. E quando hoje relemos a Chave dos Profetas, compreendemos que é o império do espírito que ocupa o orador sagrado, mais do que a evolução do poder temporal, que encerrava sempre o risco da decadência dos “fumos da Índia”, que preocupavam Afonso de Albuquerque e o próprio Camões.
Fernando Pessoa tornou o Quinto Império uma referência da língua e da cultura, dando a Vieira o epíteto de “Imperador da Língua Portuguesa”. “Este, que teve a fama e à glória tem, (…) foi-nos um céu também.”
O que estava em causa era o exercício da liberdade de espírito e a ligação entre a diversidade das raízes e o frondoso desenvolvimento de uma árvore multiplicando as influências. Em lugar do fechamento, a cultura da língua portuguesa exprime-se exatamente como nos sentimos nas margens do Amstel em contacto com os nossos compatriotas de há 400 anos, para quem a nossa casa é o mundo.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian