A noite em que Portugal se redescobriu à luz das velas
Pelas onze horas e trinta e três minutos do passado dia 28 de abril, o país mergulhou subitamente num apagão de proporções históricas, justamente considerado o mais severo das últimas duas décadas na Europa e que interrompeu abruptamente a rotina de milhões de pessoas. A origem do colapso energético, ao que tudo indica, teve origem em Espanha: uma súbita sobrecarga causada por excesso de geração renovável levou a uma instabilidade na rede elétrica, gerando oscilações que se propagaram em cascata através do sistema interligado do MIBEL (Mercado Ibérico de Eletricidade).
Num curto espaço de tempo, Portugal ficou às escuras literal e simbolicamente. Com a falência da eletricidade, as estruturas do quotidiano urbano colapsaram. Comboios imobilizados, semáforos apagados, redes móveis e internet inoperantes. A infraestrutura digital e mecânica da vida moderna ruiu em segundos perante a ausência de energia. Mas, o que poderia ter sido apenas uma catástrofe técnica que nos vai custar a todos milhões de euros, revelou-se, paradoxalmente, um momento de rara humanidade. Bairros inteiros, normalmente silenciosos e de ruas vazias sob a égide das televisões e dos smartphones, encheram-se de conversas e risos de adultos, de convívios entre adolescentes, de brincadeiras e risos de crianças. Vizinhos, muitos até então desconhecidos ou que raramente se cruzavam, encontraram-se nas varandas e na rua, à porta de casa, partilhando histórias e improvisando momentos de comunhão. A ausência forçada da tecnologia devolveu-nos à comunidade local, à presença física, à escuta atenta, ao convício e à afabilidade. Os mais “velhos” (nos quais me incluo) reavivaram memórias de outros tempos – quando os apagões faziam parte da infância – e os mais novos experimentaram, talvez pela primeira vez, a liberdade de brincar sem fios, ecrãs ou algoritmos. Até no trânsito caótico, volvidos que foram os primeiros momentos de consternação e revolta iniciais, à medida que todos nos íamos apercebendo que a pressa de nada nos valeria, a boa educação e a solidariedade recíprocas, pelos peões e pelos outros condutores, apoderou-se de todos nós, num momento absolutamente singular de boa convivência estradal. As famílias, sem o ruído de fundo das televisões ou a dispersão digital dos telemóveis, jantaram e confraternizaram à luz de velas. Algumas, como nunca antes o tinham feito.
A lentidão imposta pela incapacidade de nos opormos à inevitabilidade resultante de força maior ou evento fortuito (como dizem os juristas), tornou-se um convite à convivência, olhos nos olhos, à conversa pausada e à escuta ativa. As ruas dos bairros e cidades, quando o tempo “parou”, misturaram um silêncio e um ruído de fundo, feito de vozes e risos, há muito esquecidos. Sem a azáfama ruidosa dos motores, escutou-se o som dos passos, do vento nas árvores e das vozes humanas. No céu, na ausência de luz artificial, as estrelas brilharam com uma nitidez comovente. Mas voltemos à realidade de hoje. Este apagão refletiu a vulnerabilidade da nossa hiperconectividade e deu-nos uma lição sobre aquilo que realmente sustenta a nossa vida coletiva. Por algumas horas, fomos obrigados a desligar – mas, ao mesmo tempo, conseguimos verdadeiramente conectar-nos. Longe dos ecrãs, aproximámo-nos uns dos outros. Mas, a eletricidade voltou. E com ela, o ritmo apressado e as rotinas automatizadas. Ficou, no entanto, a memória luminosa dessa noite escura. Ficou a prova de que, mesmo numa sociedade tecnológica, a humanidade, emerge da dispensa da tecnologia. E, todos ficámos com a sensação que, talvez de vez em quando, valesse a pena desligar as luzes.
Sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados