A morte da bezerra

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Viajo numa palavra simples e despida.
Inês Lourenço,
Ainda o Lugar Incerto da Procura  

Uma neurologista que estuda a mente, através dos modernos métodos de visualização da atividade cerebral, revelou numa entrevista a hipótese da associação do fenómeno da criatividade àqueles momentos em que o nosso pensamento vagueia sem rumo aparente, aquelas ocasiões em que nos dizem estarmos a pensar na “morte da bezerra”.

Para quem há muito é alvo dessa injunção, “estás a pensar na morte da bezerra”, este artigo foi música para os ouvidos. Mas a criatividade, em si mesma e em abstrato, não chega. É preciso depois desenvolver e construir a ideia que o cérebro encontrou, na sua digressão entre o massacre das bezerras, e transformá-la em hipótese científica, em resolução de um problema matemático ou num poema. E aqui não podemos esquecer o preceito de Valéry :“Só o primeiro verso é dado, todo o resto do poema é construído.”

Esta teoria neurológica sobre a criatividade vem validar os conceitos envelhecidos de inspiração (“a poesia é um dom dos deuses”, Platão), mas alerta-nos que só a inspiração não chega. Um problema matemático só beneficiará dessa dádiva da divagação na mortandade das bezerras num cérebro altamente conhecedor de matemática. E a inspiração poética (que, lembremo-lo, contra os surrealistas e os neorromânticos, só nos dá um primeiro verso, que nos cabe depois trabalhar) só se transformará em poema se a mente inspirada puder dizer, como Camões, ainda que não lhe chegue aos calcanhares: “Nem me falta na vida honesto estudo / Com longa experiência misturado / nem engenho, que aqui vereis presente, / Cousas que juntas se acham raramente.

O problema de quem faz ofício dos versos é que a inspiração engana muito: pode conduzir-nos a banalidades e a repetições do já ouvido, que só uma forte consciência crítica permitirá afastar. É que, contrariamente aos cientistas e aos músicos, estas cintilações de criatividade de que o nosso cérebro beneficia surgem no mundo comum das palavras. E é demasiado fácil chamar a uma inanidade um achado poético... O que falta então para que tal não suceda? Estudo, experiência e engenho, como sabia Camões.

A poesia é uma luta, em que o poeta terça armas contra a inanidade e o vazio em que a “tagarelice quotidiana” (Heidegger) converte as palavras. Não quer dizer que a poesia deva ser hermética e imune ao quotidiano, bem pelo contrário. Mas algo só é poesia quando as palavras estão carregadas de qualquer coisa a que já chamaram muitos nomes (“estranheza”, para os formalistas russos, “poeticidade”, para os amantes de tautologias), mas que nós percebemos simplesmente como poesia.

A morte da bezerra é afinal o começo de um longo trabalho criativo.

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