A mais estúpida e séria das crises políticas
Vejo muitos argumentarem que não se pode comparar a atitude de PCP e BE face ao OE 2022 com o que comunistas e bloquistas fizeram aos primeiros dias da primavera de 2011, quando votaram ao lado de PSD e CDS para chumbar o PEC IV.
É certo que o argumento a que recorrem, de que então votaram contra um documento de profunda austeridade e de que agora se preparam para votar, de novo ao lado da direita, contra o OE mais à esquerda das últimas décadas, é verdadeiro. Mas, aqui não interessa a verdade, mas a consequência.
A natureza do documento não é um detalhe, mas não é aí que mora aquele que será mais um erro histórico da esquerda. Ao votarem contra o OE 2022, depois de terem colocado o PS perante exigências que sabiam inaceitáveis, PCP e BE terão a partir de hoje de conviver com uma brutal agravante, que acentua a incompreensão em relação às suas decisões.
É obviamente inconcebível que PCP e BE não tenham dado por isso, mas vivemos hoje um outro quadro partidário e a composição da direita que, muito provavelmente, sairá maioritária e em condições de formar governo de eventuais eleições antecipadas é radicalmente diferente da de 2011.
PCP e BE não estão "apenas", como fizeram em 2011, a entregar os pontos a PSD e CDS. O jogo é agora bastante mais sério. Estão a abrir a porta a um futuro governo viabilizado pelo Chega e, num patamar ainda assim menos grave, pela IL.
Todos nos lembramos do peso das escolhas "para além da Troika" que se seguiram às eleições de 2011. Algumas dessas medidas, com notável ironia histórica, servem agora de base ao voto de PCP e BE contra o OE 2022. Ou seja, ainda hoje lutam para desfazer parte do que resultou das suas decisões em 2011.
Jerónimo de Sousa e Catarina Martins têm obrigação de saber que esses anos de chumbo terão uma pálida comparação com o que estará para vir.
Dando como certo um cenário de eleições antecipadas, estamos a falar de um quadro de enorme dispersão do voto, com uma recomposição do parlamento, com a esquerda em perda e onde o Chega será, muito provavelmente, a terceira força política.
Estamos a falar de ter um futuro governo de direita viabilizado por um partido que pratica um sistemático discurso de ódio contra minorias étnicas, um partido que olha para a maioria dos portugueses dividindo-os entre as "pessoas de bem" e os outros - os que não vêem o mundo e o país como o Chega o vê -, um partido que defende uma brutal redução da rede de mínimos sociais e que ambiciona, apenas como exemplo numa longa lista de medidas contra o Estado Social, a privatização da saúde.
É difícil entender que isto não sirva de cola entre PS, PCP e BE para, pelo menos, fazer baixar o OE 2022 ao debate na especialidade.
A mais longo prazo e com efeitos mais duradouros, é preciso que a esquerda se prepare para uma base eleitoral descontente e a quem vai ser difícil ou mesmo impossível explicar como se deitou abaixo uma solução de governo que ao longo de seis anos conseguiu um equilíbrio que muitos julgavam impossível - conjugar uma agenda progressista, de redistribuição e de reforço do Estado Social, com contas públicas saudáveis e cumprimento total das exigências europeias.
Uma última nota para o Partido Socialista, que desde 2015 vem somando campanhas eleitorais em perda, com sérias discrepâncias entre sondagens e votos em urna.
A memória é curta, sobretudo quando estão em causa crises traumáticas como a pandemia. Em janeiro ou fevereiro, o sucesso da campanha de vacinação ou das medidas de apoio a empresas e famílias durante os confinamentos pouco mais serão do que uma história que ninguém vai querer lembrar.
No outro extremo, como a campanha autárquica demonstrou, agitar como bandeira grandes e distantes projectos de investimento público - sobretudo em infraestrutura - e apostar tudo na promessa de um pote de ouro salvífico que há de chegar de fora, é exigir demasiado à imaginação de eleitores que estão confrontados, hoje, com problemas concretos.
Pegando apenas num desses temas: enfrentar uma campanha eleitoral em plena crise energética sem explicar que a factura da transição energética - no fundo, o custo do combate às alterações climáticas - vai chegar a todos, é arriscado. Fazê-lo sem ter um plano para garantir que, de facto, essa transição será justa e inclusiva poderá ser fatal.
Paulo Tavares
Consultor