A madrinha de Baerbock
Já poucos se recordarão, mas o atual governo alemão demorou seis meses a entrar em funções, desde que as legislativas de setembro de 2017 deram a quarta vitória consecutiva a Angela Merkel. E também já poucos se recordarão, mas os Verdes foram o primeiro partido a disponibilizar-se para negociar com a CDU com vista a integrar uma coligação, o que acabou por não acontecer. Estes dois factos dizem-nos que, por um lado, talvez seja bom prepararmo-nos para um hiato semelhante depois das legislativas de setembro próximo, tendo em conta os equilíbrios nas sondagens que há quatro anos não existiam; e, por outro, que os Verdes não só têm um lastro de pragmatismo apurado, como isso lhes permite, aos dias de hoje, serem ainda mais competitivos na disputa da própria chancelaria. E isto, como escreveu nesta semana Rui Tavares, pode mudar a política europeia.
Ainda antes de lá chegarmos, vale a pena dizer que uma parte da política europeia foi mudando ao longo de 2020. Apesar da pandemia (ou até por causa dela), a aposta na transição climática nunca foi abandonada. Apesar da pandemia (ou mesmo por causa dela), a prioridade à transição digital nunca deixou de pautar o ritmo das reformas económicas e dos planos de recuperação entretanto aprovados. Aliás, parte dos fundos disponíveis, nas suas diversas modalidades e calendários, destinam-se a alargar as redes de infraestruturas mais amigas do clima, desde a mobilidade, à energia ou à habitação. E muito por culpa da pandemia, os europeus acordaram um mecanismo conjunto de emissão de dívida que seria impensável avançar antes da atual crise. Podemos ainda dizer que o debate sobre novos instrumentos e competências para a UE ganhou tração no último ano, seja na saúde pública, na dimensão fiscal, na autonomia estratégica, na ambição climática ou no papel do BCE. Em boa verdade, se acrescentarmos ainda a abertura aos refugiados, concluímos que todas aquelas dinâmicas são caras ao programa dos Verdes alemães, o mais europeísta dos partidos no Bundestag, o que não só valida a pertinência das suas posições junto de mais eleitores, como acomoda a sua real acuidade na primeira linha da política europeia. Arrisco mesmo dizer que Angela Merkel, sem querer, acabou por ser a madrinha política deste crescimento sólido dos Verdes.
No plano europeu, através das dinâmicas já descritas, mas também por permitir aos Verdes um contraponto inegociável em relação à China ou à Rússia, sobretudo na oposição ao Nord Stream 2. Se o partido conseguir explorar uma via alternativa que colha aliados na Europa e sobretudo em Washington, então sim, por aqui podemos assistir a uma mudança de fundo na política europeia. E será importante que Lisboa acompanhe esta evolução de perto. No plano alemão, a dupla desilusão na sucessão escolhida por Merkel (AKK e Laschet), a falta de carisma deste último, a competição sem diálogo com Söder, a cacofonia na gestão atual da pandemia e alguns casos de corrupção parlamentar, facilitaram a emergência dos Verdes como refúgio óbvio dos eleitores de centro-esquerda cansados com o SPD e os de centro-direita órfãos de Merkel. Inteligentemente, a escolha de Annalena Baerbock para candidata a chanceler pode dar aos Verdes o impulso indispensável para consolidarem essa grande base social-democrata contemporânea até às legislativas: um voto por uma novidade embora já sólida, por uma agenda que o tempo já validou, por um pragmatismo que não caiu na maleabilidade, por um programa cosmopolita mas atento aos problemas rurais, com mundo mas localista, com uma nova energia geracional mas com competência.
É por aqui que a regeneração das democracias deve ser feita: aproveitando o que existe de bom, corrigindo o que está gasto, errado e é perverso. Sem precisar de nos atirar uns contra os outros, de refundar regimes ou lançar anátemas sobre tudo. Os Verdes alemães podem ser esse trunfo.
Investigador