A literacia financeira não tem ideologia?

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Uma “Educação livre de ideologia” é uma espécie de contradição em si mesmo. Invoca uma neutralidade absoluta que é ilusória. Por isso, quando ouvimos alguém clamar por esse “mandamento” sabemos que, invariavelmente, o que pede é uma aproximação à sua matriz ideológica.

Mais útil e sensato será esperar dos sistemas educativos transparência e um compromisso com a pluralidade e o pensamento crítico. De resto, escolas e Universidades têm de ser por natureza um campo fértil para a apresentação e debate das diversas ideologias. Só assim os alunos ganham resistência à propaganda ideológica.

Como sabemos, o Governo formalizou recentemente uma proposta para a reformulação dos conteúdos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, retirando peso às matérias de educação sexual, supostamente contaminadas por uma "carga ideológica excessiva". Por outro lado, propõe o ministério da Educação (e ressalvo que reconheço a este ministro um esforço mais ativo do que o dos antecessores na resolução de muitos dos problemas do setor, sobretudo quanto aos professores) que ganhe mais influência nesta disciplina o ensino da literacia financeira. Mas, está esta isenta de ideologia?

À primeira vista, ensinar crianças e jovens a poupar, fazer um orçamento ou compreender o funcionamento dos bancos soa inócuo. No entanto, a forma como a literacia financeira é ensinada pode, claramente, ter contornos ideológicos, dependendo dos temas, das narrativas e dos atores envolvidos. A proposta ainda em consulta pública para vigorar a partir de setembro de 2025 desde o 1.º ciclo até ao secundário introduz temas como poupança, investimento, empréstimos, elaboração de projetos empreendedores, rentabilidade, modelos de negócio sustentáveis…

Há menções a “consciência social e ecológica” e “responsabilidade social” nas empresas, mas a lógica dominante é a do empreendedorismo, da responsabilidade individual e da adaptação ao mercado.

Como garantir, por exemplo, que vamos equilibrar isso com o papel das desigualdades socioeconómicas? Como se ensina a poupar uma criança cuja primeira refeição é o lanche da escola e nunca teve mesada? E qual a regra para desenhar um orçamento familiar que resista ao facto de a renda da casa engolir mais de metade do rendimento dos pais? Os modelos apregoados serão os de empresas que repercutem lucros nos benefícios dos funcionários ou os das que só projetam aumentos de margens de lucro mantendo salários baixos e precariedade? Discutiremos os riscos sistémicos, o peso da concorrência desleal ou o fracasso de muitos microprojetos? Haverá análise crítica do sistema bancário, da especulação financeira, da evasão fiscal, do papel do Estado na economia, da importância dos sindicatos ou direitos laborais? Os autores de influência, serão Foucault, Piketty, Wendy Brown? Ou Hayek, Friedman, Gary Becker?

O problema nunca foi a existência de ideologia na educação — o problema é quando só uma é autorizada a entrar na sala de aula, enquanto as outras ficam de castigo à porta.

Editor executivo adjunto

Diário de Notícias
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