A lição da Ucrânia
A meio da década de noventa do século passado, poucos anos depois da queda do Muro de Berlim, Thomas Friedman desenvolveu a teoria de que não haveria guerra entre países que tivessem restaurantes McDonald"s. A tese era pouco sofisticada, pouco sustentada e foi rapidamente desmentida, mas correspondia a uma ideia estruturante destas três décadas.
A vitória do Ocidente permitiu a expansão da democracia, a abertura global de mercados, mais comércio internacional, crescimento económico, classes médias. A convicção associada a este processo era a de que países em crescimento económico, com regimes tendencialmente democráticos (ou, pelo menos, expostos a algum escrutínio popular) não teriam incentivos para entrar em guerra entre si, e teriam todos os incentivos para não entrar.
Apesar de esta teoria já ter sido desmentida antes, o dia 24 de fevereiro de 2022 ficará na História como o momento em que este mundo foi posto em causa. Os constrangimentos ocidentais na imposição de sanções à Rússia mostraram que a interligação económica afinal não era uma interdependência mútua neutralizante de conflitos, mas um condicionamento da nossa capacidade de resposta.
Verdadeira, ou não, definitiva, ou não, em cima da pandemia, esta crise vem reforçar a ideia de que a interdependência económica, a globalização, pode ser uma fragilidade insuportável. Quem defende as virtudes do comércio internacional para a economia e para a paz terá de repensar algumas condições necessárias para que resulte. Mas o que se está a passar não põe em causa tudo aquilo em que acreditamos. Muito pelo contrário.
A razão fundamental desta guerra é, do lado de Putin, a recuperação para a Rússia, e para si, de um lugar no mundo que foi perdido com a derrocada da União Soviética. Do lado da Ucrânia, a razão para ter decidido lutar, porém, é a prova da vitalidade e atratividade do nosso modo de vida. A Ucrânia enfrentou a agressão russa porque se recusava a não poder escolher a Liberdade e o Ocidente. A União Europeia e a NATO. Exatamente como os países bálticos e os da "Europa de Leste" em 1989 e diante. É por isso que é tão obsceno ouvir dizer que têm o dever de se subjugar. Como se houvesse povos sem direito à nossa Liberdade.
Mas há, ainda, outra impressionante vitória. A resposta ocidental à Rússia trazia sempre riscos para os países da UE e da NATO. Alguns deles evidentes desde o princípio. E, no entanto, desde o começo que houve um enorme acordo sobre a necessidade de defender esse direito da Ucrânia a poder escolher a Liberdade (e segurança) ocidental. Da direita democrática à esquerda democrática, reapareceu o consenso Ocidental. Libertas das coligações com as posições extremistas de esquerda e de direita, por um momento as nossas sociedades pareceram de novo menos polarizadas e radicais. Como os moderados andam a dizer há muito tempo, há um grande consenso dentro do qual podemos divergir, mas sem o qual não podemos viver.
E há, ainda, o efeito de tudo isto na Europa. Trump, primeiro, o Afeganistão e os submarinos depois, tinham afastado os aliados transatlânticos. A agressão de Putin tornou a aliança ocidental mais evidentemente necessária. Mesmo que a Europa tenha de assumir maior responsabilidade pela sua segurança, e tem e, como se viu este domingo na Alemanha, está mais disposta a fazê-lo, não será apesar da NATO ou em alternativa.
A Rússia fez pela Europa, em poucos dias, o que décadas não tinham feito: a partilha de uma perceção de ameaça e de um inimigo comum. Ao mesmo tempo que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, deu aos europeus o que não tinham: um líder inspirador e uma causa. O mundo mudou. Mas nunca é para sempre.
Consultor em assuntos europeus