A lei e a vida
"And always the loud angry crowd Very angry and very loud, Law is We, And always the soft idiot softly Me"
W.H. Auden, Law like Love
Obrigar a viver alguém que não aguenta as condições da dolorosa e impotente vida que lhe resta e suplica que lhe dêem fim parece a alguns uma obra de misericórdia e de sensatez. Quem já acompanhou o fim de alguém bem próximo e recusou, por medo ou inércia, conceder-lhe o alívio pedido, pode entender o monstruoso equívoco dessa pretensa defesa da vida.
O humano nunca é inteiramente redutível a conceitos precisos e unívocos e por isso a lógica jurídica esbarra no absurdo quando pretende medir e pesar o sofrimento. Como posso eu avaliar a dor de um outro ser humano? Quem sou eu para recusar o alívio a um desesperado e em nome de que valores fundamentarei essa recusa?
Continuamos, na questão da eutanásia ou do suicídio assistido, a quedarmo-nos presos a uma ideia de sacralidade e indisponibilidade da vida, que é respeitável na ordem das escolhas éticas, mas que não deveria ser transposta para a ordem jurídico-penal. Tal como na questão da despenalização do aborto, felizmente já alcançada entre nós.
Para prosseguir com questões constitucionais, e com um pensamento solidário para o meu velho amigo e colega João Caupers, entramos noutro domínio do sofrimento quando examinamos a questão da constitucionalidade dos maus tratos a animais.
O reconhecimento dos animais como seres sencientes constituiu um avanço ético inegável, mas que vem esbarrar na contradição de continuarmos a matar animais para os comer e a utilizar animais para experiências científicas. Nesse sentido, só os vegetarianos seriam coerentes com a consciência nova que temos do sofrimento dos animais e não penso que a Humanidade em geral caminhe para o vegetarianismo. Não obstante, choca-nos moralmente que se faça sofrer sem propósito os animais e saudamos as medidas tomadas, quer para aliviar o seu sofrimento, quer para penalizar quem os faz sofrer gratuitamente.
Mais uma vez a dimensão humana escapa ao rigor dos conceitos. Pretende-se penalizar os maus tratos a animais, mas não os matadouros nem os laboratórios. A exemplo da Natureza, continuamos e continuaremos a ser predadores. Mas limitar a nossa crueldade será sempre um progresso moral.
Onde o estritamente jurídico se vai colocar também em oposição à consciência moral da comunidade é na questão dos salários e indemnizações dos gestores.
Mais do que averiguar da legalidade deste novo sistema de castas, em que os gestores das grandes empresas se situam num universo paralelo e diferenciado de todas as regras do mundo do trabalho, interessa entender que quando o Estado assume que tem de seguir as regras das empresas privadas para conseguir os melhores gestores, o mesmo Estado assume que não tem de ter esse incómodo com polícias, professores, médicos ou enfermeiros, a quem se aplicam as regras comuns.
A gestão empresarial é vista como um dom dos deuses e até os gestores que façam falir as empresas irão receber os seus prémios e os seus bónus, porque o único critério é dar rendimento aos acionistas e este tornou-se o valor social supremo.
Mais, bem mais, que a nossa segurança, o nosso ensino ou a nossa saúde.
O gestor público tende assim a considerar o Estado como mais uma empresa, para onde entra e de onde sai como de uma empresa para outra, e onde gozará do mesmo direito divino que a sua condição de gestor implica. Não o choca que os seus rendimentos sejam superiores aos do próprio Chefe do Estado, porque a aura que envolve as suas funções o sacraliza e o torna imune.
O rigor conceptual do tecido jurídico encontra-se com o desconcerto e as contradições do mundo da vida no momento da sua interpretação e aplicação. E esse encontro da pureza dos conceitos com as incongruências do real tem que aferir-se pela sensibilidade e pelo bom senso, sob pena de entrar em conflito com o anseio de justiça da comunidade. O Direito encontra a realidade humana através de quem o interpreta e de quem o aplica: para o bem e para o mal, para o sofrimento dos animais como para a felicidade dos gestores, é na contingência dos seus intérpretes que se lê a Lei e não na multidão zangada de que fala o poema de Auden.
Diplomata e escritor