A imprensa e a sensação de insegurança
O estudo da SEDES sobre a perceção de insegurança, que divulgamos nesta edição, aponta para uma contradição entre os números oficiais da criminalidade e o destaque que os principais jornais dão ao fenómeno. Se, por um lado, o número de crimes reportados baixou 1,3% em 25 anos, por outro as referências à criminalidade nas capas dos principais jornais aumentaram 130%. A SEDES conclui que esta discrepância entre a realidade e a forma como a comunicação social aborda o fenómeno poderá contribuir para a erosão da confiança nas instituições, sem esquecer também o papel desempenhado pelas redes sociais.
No entanto, estes dados devem ser analisados com cautela, podendo ser prematuro estabelecer uma relação de causa-efeito entre o destaque que a imprensa dá ao fenómeno da criminalidade e o alegado aumento da percepção de insegurança. A única certeza que podemos ter, à partida, é que, nos últimos 25 anos, a imprensa passou a dar mais destaque, nas suas primeiras páginas, aos temas relacionados com a criminalidade. Podemos também concluir, por observação empírica, que os canais de notícias e as edições online das principais marcas de informação dedicam grande atenção a estes temas, o que constitui um sinal inequívoco de que os mesmos garantem audiências.
Tudo o que for para além destas conclusões que são facilmente verificáveis pertence ao domínio das hipóteses, incluindo o assumir que esse enfoque jornalístico reforçou o sentimento de insegurança e, por essa via, ajudou a moldar o debate político. Ou se, pelo contrário, os media se alimentam de um sentimento de insegurança já existente, indo ao encontro daquilo que os seus leitores e telespetadores querem ler, ver e ouvir. Tal como, de resto, farão os políticos.
Aqui chegados, importa ter em atenção três aspetos relevantes.
O primeiro é que não sabemos se, de facto, ocorreu um aumento da referida perceção de insegurança nestes 25 anos. Aumentou de verdade ou sempre existiu nos níveis atuais, sobretudo nas periferias das grandes cidades, embora tenha ganho recentemente mais relevância política e mediática?
O segundo é que a imprensa procura ir ao encontro daquilo que são os interesses dos seus leitores. Saber se influencia os sentimentos do público é um pouco como tentar descobrir quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Até porque vivemos num sociedade bastante diferente daquela que tínhamos há 25 anos, nomeadamente por ser mais envelhecida e “gentrificada”, sendo por isso mais propensa a valorizar a segurança. E o mundo do crime também evoluiu, sendo capaz de desafiar os governos e os estados a níveis nunca antes vistos. Portugal enfrenta hoje organizações criminosas que conseguem construir submarinos para atravessar o Atlântico com toneladas de cocaína e que estão a instalar testas de ponte no nosso país. É compreensível que muitas pessoas se preocupem com este facto. E as mudanças de hábitos de consumo de informação explicam o resto: hoje, muitas vezes os leitores consomem apenas fragmentos de informação. Lêem as “gordas” das primeiras páginas dos jornais e depois saltam de site em site, à medida que as notícias lhes aparecem nos seus feeds nas redes sociais. Assistem aos canais de notícias durante uns minutos e lêem um oráculo aqui e ali. Notícias que antes estavam ao alcance apenas dos leitores de uma certa imprensa mais voltada para estes temas passaram a estar acessíveis a todos.
O terceiro é que, mesmo que a imprensa contribua para esse sentimento de insegurança, isso não será necessariamente um problema. Vamos imaginar que a imprensa não dava esta atenção que tem dado ao tema da criminalidade. Sentir-nos-íamos todos mais seguros? Vamos partir do princípio de que talvez sim, com exceção daquelas pessoas que, no seu dia a dia, temem pelas suas vidas e as dos seus familiares e receiam ser assaltadas, violentadas ou agredidas se saírem de casa a partir de determinadas horas. Para essas pessoas, nada mudaria. Estaríamos todos mais seguros? Não, porque as ameaças existiriam à mesma. Haveria mais pressão, por parte da sociedade, para que as forças de segurança tenham os meios de que necessitam para manterem a ordem? Também não.
Dito isto, a verdadeira questão suscitada pelo estudo da SEDES não está no facto de a comunicação social dar destaque a estes temas, mas sim na forma como o tem feito. Tem-no feito com ponderação, sem sensacionalismo e respeitando os direitos das pessoas envolvidas, tanto no que diz respeito às vítimas como aos arguidos e acusados? Tem atribuído a estes fenómenos a importância que de facto devem ter, não lhes dando nem mais nem menos do que realmente merecem? Tem-no feito de forma fundamentada em factos comprováveis e em estatísticas fiáveis? Tem contribuído para que haja ideias feitas e estereótipos sobre determinadas pessoas e comunidades? Esta é uma reflexão que nós, jornalistas, temos obrigação de fazer todos os dias.