A IA e o último humano ao volante

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A maioria de nós nunca se imaginou a projetar a aerodinâmica de um avião e, sejamos honestos, também não teria grande sucesso na investigação científica dos mecanismos biológicos de bactérias ou microorganismos. Redigir um contrato ou interpretar balanços contabilísticos pode parecer mais simples, mas isso está longe de fazer de alguém um jurista ou contabilista de excelência. A verdade é que há profissões tão exigentes do ponto de vista intelectual que só anos de treino e experiência permitem dominá-las.

Pela primeira vez, a Inteligência Artificial (IA) começa a entrar nesse território, alimentando-se de volumes massivos de informação. Profissões que antes pareciam intocáveis estão a ser apoiadas - e até desafiadas - por algoritmos. Hoje, já não chega ser competente: é preciso saber usar as ferramentas certas para produzir mais e melhor. Os superpoderes ainda pertencem à fantasia e à ficção científica, mas, com a IA, talvez estejam mais perto de se tornar realidade do que nunca.

Apesar do entusiasmo em torno da IA, persistem desafios à sua adoção generalizada. Um dos principais é a lentidão da legislação, sobretudo na criação de regras claras para responsabilidade, ética, privacidade e conformidade. Basta ver como os EUA, ao seu estilo habitual, optaram por não regular, e a UE ficou num meio-termo, receando perder competitividade. Soma-se a isto a falta de infraestruturas de dados robustas e de sistemas de cibersegurança capazes de lidar com o volume e a sensibilidade da informação processada pela IA.

Além disso, há uma clara escassez de competências técnicas: são poucos os que estão preparados para implementar e gerir sistemas de IA, e ainda menos os que sabem tirar partido destas ferramentas no seu trabalho. Acresce que o investimento financeiro associado é significativo, sobretudo num contexto de incerteza macroeconómica, o que leva muitas empresas a adiar decisões estratégicas. E, claro, não podemos ignorar o impacto ambiental: o consumo energético da IA já rivaliza com o de países inteiros, com estimativas recentes a apontarem para valores comparáveis ao consumo anual da Irlanda.

Mas talvez o maior obstáculo seja mesmo humano. Resistimos naturalmente à mudança e preferimos o que é familiar. Já no início do século XIX, nos primórdios da Revolução Industrial, os luditas destruíam máquinas por temerem o avanço da tecnologia. Hoje, ordens profissionais nas áreas como medicina, direito e contabilidade vão provavelmente tentar travar ao máximo a substituição dos seus atos pela IA, pressionando o legislador. Mas, mais cedo ou mais tarde, a necessidade e as vantagens económicas vão acabar por ditar a mudança. Se amanhã pudéssemos construir uma casa a metade do preço com recurso a robôs, quem estaria disposto a pagar o dobro só para garantir que foi feita por pessoas?

A confiança é um ponto central. Assistimos a avanços significativos em várias áreas, nomeadamente na dos carros autónomos - como os Waymo ou os Robotaxi da Tesla - mas será que estamos dispostos a entrar num carro sem condutor? Por mais sofisticada que seja a tecnologia, a verdade é que continuamos a sentir-nos mais seguros com um humano ao volante. Este receio ajuda a explicar porque, mesmo com a IA capaz de substituir algumas profissões a curto prazo, os humanos continuarão envolvidos por enquanto.

Nem todas as áreas serão impactadas da mesma forma. Pode parecer contra-intuitivo, mas acredito que mais depressa se substituirá a medicina de diagnóstico do que a contabilidade ou o direito. Com a escassez de médicos, se tivermos mais IA não salvaremos vidas? O diagnóstico médico é, na essência, um exercício probabilístico: interpretar sintomas, cruzar com conhecimento prévio e chegar a uma conclusão. Para a IA, este raciocínio é trivial, já que consegue aceder em tempo real a todo o histórico de doenças e probabilidades conhecidas.

Se ainda não estamos todos a recorrer à IA no nosso smartphone quando estamos doentes, é porque este ainda não pode passar receitas e, talvez, porque ainda não confiamos totalmente na tecnologia. Com a escassez de médicos a agravar-se e a pressão sobre o sistema de saúde a aumentar, acredito que será a própria sociedade a pedir para que a IA seja adicionada na primeira linha do SNS.

É imperativo abraçarmos o progresso para responder aos desafios que se avizinham. Com o colapso da pirâmide etária, ou investimos em tecnologia para compensar a falta de trabalhadores, ou corremos o risco de não ter quem produza comida, bens ou serviços. O receio de que a IA nos ponha no desemprego é uma visão demasiado curta. A longo prazo, precisaremos dela para sobreviver. Por isso, a evolução tecnológica não é só inevitável; é desejável, desde que aconteça a um ritmo que permita adaptação, sem pânico ou exclusão.

O verdadeiro valor dos profissionais estará no toque humano: a habilidade para lidar com subjetividade, irracionalidade e emoções. A empatia continuará a ser fundamental para a convivência em sociedade, algo que a IA, por mais treinada que seja, ainda não consegue aprender. A IA é lógica e objetiva, o que tem as suas vantagens: um mais um será sempre igual a dois, independentemente da vontade política e das opiniões mais ou menos extremadas. Mas é precisamente por não conseguir compreender e aprender emoções que a IA terá sempre limitações. Provavelmente nenhuma profissão está a salvo de ser impactada pela IA, mas as profissões que exigem esse toque humano serão sempre mais difíceis de automatizar.

Esta limitação em contextos humanos reforça um ponto essencial: mais do que relegar a tecnologia para tarefas secundárias, é crucial garantir que o ser humano continua envolvido, sobretudo nas decisões críticas. A IA deve servir as pessoas, e nunca o contrário. Se invertermos esta lógica, arriscamo-nos a tornar o dia d’ “O Julgamento Final” dos filmes do Exterminador Implacável numa realidade bem menos ficcional.

Penso muitas vezes sobre o caminho profissional que os meus filhos deveriam seguir. Talvez o futuro pertença às áreas artísticas e criativas. Imagino as próximas gerações a viver em casas construídas por robôs e a ter médicos virtuais, mas a aproveitar o tempo livre para ir ao teatro, a um concerto, a uma exposição. E pergunto-me: será que vão preferir artistas de IA ou continuarão a valorizar os humanos, no esplendor da sua imperfeição?

Num mundo dominado pela tecnologia, talvez sejam precisamente as profissões que até há pouco tempo se dizia que não tinham futuro que vão acabar por se tornar as verdadeiras profissões de amanhã.

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