A história que Eldorado conta
Eldorado pode ser uma pequenina cidade de 13 mil habitantes no Vale da Ribeira, Estado de São Paulo, mas a sua história confunde-se com as últimas décadas, anos e meses da História do Brasil.
Em meados do século passado, a povoação a que os portugueses deram o nome de Nossa Senhora da Guia de Xiririca (água corrente em tupi-guarani), depois renomeada Eldorado por causa do ouro descoberto nas redondezas, também tinha, como tantas outras país afora, o seu “coronel”.
Era o doutor Jaime, advogado e dono de Caraitá, a fazenda que ocupava cerca de metade da área da cidade. O “coronel” foi eleito prefeito local, ainda em democracia, e reeleito, já durante a ditadura brasileira de 1964 a 1985, pelo Arena, o partido dos militares.
Os filhos e netos do doutor Jaime usufruíram, portanto, do bom e do melhor para ressentimento de parte da sacrificada população eldoradense, como o dentista prático Percy e os seus filhos.
Algures no final dos anos 60, entretanto, uma notícia abalou a cidade: Carlos Lamarca, um dos líderes da luta armada contra a ditadura, estava escondido na fazenda Caraitá, supostamente com a cumplicidade do doutor Jaime, que sempre negou envolvimento, e família. O que levou um filho adolescente do dentista Percy, empenhado nas buscas pelo guerrilheiro por se sentir atraído pelos ritos do Exército, a ficar ainda mais ressentido com a família do “coronel”.
O filho do doutor Jaime, que nunca se deu bem com o pai por ter uma visão progressista do mundo, já havia trocado, anos antes, o interior de São Paulo pelo Rio de Janeiro, onde cursou Engenharia e se elegeu deputado federal à esquerda, em 1962. Porém, em 1964, com a chegada dos militares ao poder, o mandato foi suspenso.
Já o filho do dr. Percy seguiu, como sempre sonhou, a carreira militar, antes de também se tornar político, mas radical de direita.
O filho do dr. Jaime chamava-se Rubens Paiva, cujo desaparecimento nos porões da ditadura militar inspirou o filho Marcelo a escrever o livro Ainda Estou Aqui e o cineasta Walter Salles a realizar o filme homónimo, candidato a Oscar de Melhor Filme, de Melhor Atriz, Fernanda Torres, que interpreta a viúva de Rubens, e de Melhor Filme Estrangeiro.
O filho do dr. Percy chama-se Jair Bolsonaro e chegou em 2018 à presidência da República, depois de anos a fio como obscuro deputado federal.
Num desses anos de obscuridade, em 2014, enquanto a Câmara dos Deputados inaugurava um busto em homenagem a Rubens Paiva, o deputado Bolsonaro interrompeu os discursos emociona- dos de filhos e netos do distinguido para gritar: “Ele teve o que mereceu, comunista, desgraçado, vagabundo” e cuspir no busto.
Antes, durante as buscas da família pelo local onde Paiva fora enterrado, Bolsonaro afixou uma placa no seu gabinete com a inscrição: “Quem procura osso é cachorro”.
O ressentimento do filho do dentista Percy pela família do “coronel” Jaime confunde-se com as últimas décadas, anos e meses da História do Brasil.
Jornalista, correspondente em São Paulo