A história de fé e coragem dos cristãos ocultos
Foi a ler Uma Vida de Jesus que descobri Shusaku Endo. E foi este escritor japonês, cristão, que inspirou com o romance Silêncio o filme com o mesmo nome realizado por Martin Scorsese há uns anos, em que Liam Neeson interpreta o padre Cristóvão Ferreira. Por coincidência, visitei Nagasaki poucas semanas depois de ter visto num cinema de Lisboa Silêncio. E, de repente, lá estava eu nas praias onde os padres portugueses e os cristãos japoneses eram supliciados por ordem do xógun Tokugawa, que via os padres estrangeiros, mas sobretudo a fé estrangeira que se estava a tornar japonesa, como uma ameaça à unidade nacional. Aconteceu mais ou menos há 400 anos e em 1639 os últimos portugueses foram expulsos de Nagasaki, só ficando na pequena ilha de Dejima os holandeses, calvinistas que faziam comércio mas não tentavam converter ninguém.
Foi em Nagasaki que em meados do século XIX aconteceu um milagre. O Japão abriu-se de novo ao mundo, um segundo encontro depois do da chegada dos portugueses em 1543, e um padre francês recém-instalado deparou com japoneses que diziam ser católicos. Eram os cristãos ocultos, os Kakure Kirishitan, que tinham mantido a fé, apesar das perseguições e do isolamento do resto da comunidade cristã. Para evitar a fúria dos xóguns, pois o clã dos Tokugawa governou muito tempo a partir de Edo (atual Tóquio) remetendo então o imperador a um papel simbólico no palácio de Quioto, os cristãos reuniam-se em grutas, rezavam a uma figura feminina budista que tem um bebé ao colo tal como Maria, desenhavam cruzes com os seixos apanhados nas praias, desfazendo-as depressa se alguém estranho se aproximasse.
Não tinham padres, mas organizaram-se e criaram a sua própria hierarquia, que o Vaticano só veio a descobrir muito depois. Por exemplo, um mizukata era quem fazia os batismos nas comunidades dos cristãos ocultos. As orações seguiam as palavras do latim que sabiam de memória e iam passando de geração em geração. E no calendário litúrgico seguiam os dias da semana inspirado no português: shikuta para segunda-feira, terusha para terça-feira, quwaruta para quarta-feira e assim por diante.
Afinal, o chamado século cristão do Japão (1543-1639) foi um século de influência portuguesa e por isso, além das naus do trato que sobrevivem nos biombos Namban, a grande importância de São Francisco Xavier, navarro cujas cartas em português estão no Museu dos 26 Mártires em Nagasaki, ou de João Rodrigues, nascido em Sernancelhe, que fez a primeira gramática de japonês e o primeiro dicionário japonês-português, na realidade o primeiro dicionário do japonês com qualquer língua ocidental.
Sim, descobri Susaku Endo através de uma biografia de Jesus comprada num alfarrabista. E li Silêncio ainda antes de Scorsese o mostrar em versão Hollywood, um filme excelente, mas de pouco sucesso. Também nunca deixou de me impressionar que a comunidade católica de Nagasaki, de novo em crescimento depois da reabertura do país, tenha em grande parte desaparecido quando a segunda das bombas atómicas lançadas em agosto de 1945 explodiu 500 metros acima da catedral de Urakami à hora da missa. E ter estado no litoral onde se orava às escondidas durante 200 anos marcou-me muito. Sempre achei fascinante esta história dos Kakure Kirishitan, um dos legados menos conhecido do que foram os Descobrimentos portugueses. Uma história de contato de civilizações, também de choque de culturas, mas sobretudo um testemunho de fé e de coragem destes milhares de japoneses (há quem fale de 300 mil convertidos no pico do tal Século Cristão).
Escrevo este texto, que publico neste Natal de 2024, porque há dias conheci um descendente de cristãos ocultos, Kazutoshi Kakimori. Veio a Lisboa, numa iniciativa da embaixada do Japão, falar sobre os Kakure Kirishitan. É das ilhas Goto, ao largo de Nagasaki, um local isolado que permitiu escapar às perseguições religiosas. O avô foi um dos últimos Mizukata e fiquei a saber que depois da reabertura do Japão os cristãos ocultos tentaram manter a sua forma especial de catolicismo apesar das pressões da Igreja para seguirem a versão oficial. Acabou por vingar esta última, mas sem que isso afetasse o sentimento da comunidade, consciente de como é especial a sua fé. O professor Kakimori, historiador dos Kakure Kirishitan, deu a palestra em japonês e também conversou em japonês comigo, com a tradução a ser feitas pelo padre Renzo De Luca, diretor do Museu dos 26 Mártires que conheci em 2017 quando estive em Nagasaki.
O padre De Luca é um jesuíta argentino e contou-me que o mais famoso jesuita argentino, o Papa Francisco, tem uma especial admiração por estes cristãos ocultos. Até recebeu agora no Vaticano a delegação encabeçada pelo professor Kakimori, e em 2019 esteve em Nagasaki, tal como João Paulo II em 1981, e há ainda uma célebre prédica em 2015 em que fala dos Kakure Kirishitan como exemplo para os cristãos.
Quando ainda era Jorge Mario Bergoglio, jovem padre jesuita, o Papa queria ser missionário no Japão, contou a um dos seus biógrafos. Provavelmente inspirado pela história de fé, coragem e sentido de comunidade dos antepassados do professor Kakimori. É uma história que pode inspirar qualquer um, seja qual for a religião ou mesmo que não a tenha. É uma história sobre convicção. “Nós, os descendentes dos cristãos ocultos, fazemos as orações que os portugueses nos ensinaram no século XVI”, disse Kakumori na entrevista que lhe fiz.
Diretor adjunto do Diário de Notícias