A herança do Papa na Era da Internet

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Morreu o Papa Francisco e com ele partiu não apenas um líder religioso, mas uma das vozes mais lúcidas e humanas que ousaram pensar a era digital à luz da dignidade. Num tempo de ruído e velocidade, Francisco fez uma pausa e ousou refletir sobre o tema. Quando os dados valem mais do que as palavras, ele lembrava que “a verdadeira sabedoria não é acumular informação, mas saber usá-la para o bem comum”.

O seu interesse pelas questões digitais surpreendia. Não era um nativo digital, mas talvez por isso via com mais clareza os riscos da Internet e as suas promessas esquecidas. Nunca se deixou seduzir pela tecnologia enquanto fetiche, contudo também nunca a demonizou. Para ele, a rede era uma extensão da condição humana, repleta de possibilidades e perigos.

“A Internet é um dom de Deus, mas também uma grande responsabilidade”, disse ele em 2014, numa das suas primeiras intervenções sobre o tema. Foi pioneiro em usar uma linguagem híbrida de fé e ética para falar de redes sociais, algoritmos e inteligência artificial. Não se limitou à crítica, propôs alternativas, exigiu princípios e sonhou com uma “algor-ética”, onde a inteligência fosse artificial, mas a compaixão bem real.

Francisco denunciou o risco de uma economia digital que trata o ser humano como dado, recurso ou mercadoria. Alertou para uma lógica em que o valor se mede em cliques e capital, esquecendo o rosto por detrás do perfil: “Não podemos aceitar uma economia digital que exclui, que descarta, que marginaliza em nome do progresso”.

Defendeu uma Internet inclusiva, onde ninguém fique para trás, nem os pobres, nem os idosos e nem os povos esquecidos - “Todos, todos, todos!”. Para ele, o acesso digital era uma forma de justiça social. Insistia que a tecnologia deve unir e integrar, e não dividir nem segregar.

No seu último documento sobre ética digital, afirmou que “as máquinas não devem jamais decidir sobre a vida de um ser humano”. Era um alerta contra a delegação de juízos morais em sistemas automatizados. Para Francisco, a governação digital não podia ser entregue a uma tecnocracia sem alma.

Foi também incansável no combate ao ódio e à intolerância online. Chamou pelo nome os venenos que circulam nas redes: racismo, xenofobia, misoginia, fanatismo. Alertou para bolhas de radicalização geradas por algoritmos que alimentam a indignação em vez da escuta, ao afirmar que “a comunicação deve ser ponte e não muro”.

Durante o seu pontificado, o Vaticano tornou-se discretamente um polo de pensamento sobre ética tecnológica. Promoveu encontros entre líderes religiosos, programadores, filósofos e engenheiros. Enquanto muitos discutiam regulação, Francisco falava de responsabilidade. Enquanto se programavam algoritmos, ele pedia consciência, ao afirmar que “a técnica deve estar ao serviço do ser humano e não o contrário”.

Com a sua partida, o mundo digital perde uma das raras vozes que, falando de dentro da fé, se dirigia ao mundo inteiro. Uma voz que ousava perguntar: Que Internet estamos a construir? E para quem?

Hoje os seus alertas são ainda mais urgentes. A rede cresceu, os sistemas tornaram-se mais complexos e no entanto a pergunta de Francisco permanece atual: “Estamos a usar a tecnologia para nos aproximar ou para nos isolar?”

O Papa Francisco não era programador, mas reprogramou consciências. Não era engenheiro, mas ajudou a construir pontes entre mundos cada vez mais afastados. Na história da Internet, ficará algures o seu nome, não como um influencer, mas como um farol profético.

Quando um algoritmo hesitar entre o lucro e a compaixão, talvez se lembre de um velho Papa que, do alto do seu olhar simples e cheio de ternura, ousou lembrar-nos que o amor, a tolerância e a inclusão também têm lugar na Internet, enquanto rede capaz de nos unir à escala global.

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