A herança de Hannah Arendt

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A revista francesa Philosophie Magazine acaba de lançar um número especial dedicado a Hannah Arendt (1906-1975). Nele encontramos uma antologia multifacetada, incluindo citações, textos de análise e entrevistas com estudiosos da obra de Arendt, celebrando a extrema e perturbante actualidade da sua obra. Entenda-se: não uma “aplicação” simplista do seu pensamento ao nosso século XXI, mas uma releitura crítica da sua fascinante pluralidade argumentativa, sem esquecer que tal pensamento não pode ser dissociado do contexto geo-político em que os nazis puseram em marcha o Holocausto, nessa medida envolvendo o estudo dos totalitarismos antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. 

As propostas de reflexão são tanto mais interessantes quanto, mesmo quando não o explicitam, ecoam uma fundamental disponibilidade intelectual que vai pontuando a obra de Arendt. A saber: o desejo de libertar a política - enquanto pensamento e ação - da dicotomia compulsiva “direita/esquerda”. Escusado será dizer que a resistência às facilidades de tal dicotomia não se confundem com qualquer forma de fusão, que seria pura confusão, dos ideários dos diferentes adversários políticos. 

Fotograma do filme Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt (2015).
Fotograma do filme Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt (2015).

O que está em causa é a possibilidade de pensar além (porventura aquém) da sua pressão ideológica e, hoje em dia, mediática, infelizmente dominante no espaço televisivo. A esmagadora maioria das “análises” que acompanhamos no pequeno ecrã aplicam a fórmula “direita/esquerda”, não para tentar compreender a dinâmica das ideias políticas, apenas para avaliar se tais ideias satisfazem ou não a fórmula dicotómica enunciada antes do próprio conhecimento dos factos e das suas nem sempre previsíveis dialécticas. 

Numa das entrevistas deste número da revista, Roger Berkowitz, filósofo e professor do Bard College (Nova Iorque), fala, em particular, do que significa “defender uma certa ideia da América” face à presidência de Donald Trump. A esse propósito, analisa os prolongados efeitos da acção da “nova elite” que, na sequência das convulsões da década de 1960 contra as elites conservadoras, se apresentou como uma entidade que sabe “tudo sobre tudo”, tentando impor “novas normas para todos”. 

Berkowitz recorda que semelhante ditadura do novo (a expressão é apenas minha) “é o que Hannah Arendt critica, por exemplo, na vontade dos militantes dos direitos cívicos imporem pela força que os autocarros escolares se abram à diversidade racial, sobrecarregando as crianças com a reparação do fardo da segregação herdado do passado” — sem esquecer, repito, que tudo isto deve ser citado em função de uma conjuntura americana vivida há 60 anos. 

De qualquer modo, Berkowitz reflete também sobre o presente de uma certa cultura política “liberal” (as aspas são dele), prolongando o seu raciocínio com uma alusão muito pessoal: “Sou favorável ao aborto, mas não pretendo impor os meus pontos de vista aos que não pensam assim. Sou favorável à mudança de género, mas não pretendo impor a toda a gente a ideia segundo a qual o género não existe. Acima de tudo, não estou a afirmar que aqueles que discordam de mim são racistas sexistas e transfóbicos que deviam ser excluídos do debate público.” 

A herança de Hannah Arendt não pode ser separada deste misto de agilidade e contundência — e, nessa medida, do conceito (e, sobretudo, das práticas) daquilo a que damos o nome de espaço público. Recordando Thomas Jefferson, escreveu ela em 1967, no seu Ensaio sobre a revolução: “O que, segundo ele, constituía o perigo mortal para a república era que a Constituição tivesse conferido todo o poder aos cidadãos sem lhes proporcionar a possibilidade de serem republicanos e de agirem enquanto cidadãos.” 

O que nos encaminha para uma pergunta que assombra as nossas democracias: porque é que o único espaço público activo, diariamente activo, passou a ser o espaço televisivo? Para lá do afunilamento dos pensamentos, não estará o mesmo espaço a promover uma noção meramente virtual da consciência política, sustentada pelo fluxo quotidiano de imagens sem imaginação? Resta saber se há algum político com coragem para pensar sem se submeter às regras desse espaço, mas também não desistindo das suas potencialidades democráticas. 

Jornalista

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