A guerra possível

Publicado a

Desde os tratados de Vestfália que a ordem internacional se determina ou é determinada pelo resultado dos grandes conflitos. Foi assim no fim da Guerra dos Trinta Anos, quando ficou regulada por esses mesmos tratados e, depois das guerras da Revolução e do Império, pelos Acordos de Viena de 1815. Em 1919, foi a paz de Versalhes imposta à Alemanha derrotada que levou à guerra, vinte anos depois.

A ordem de Vestfália não tinha propriamente uma ideologia, mas criou, como lembraria Carl Schmitt, o Jus Publicum Europaeum, o direito público europeu, que concomitantemente arrastou um direito da paz e da guerra, uma ordem internacional baseada na coexistência pacífica de Estados soberanos. Para Schmitt, depois das matanças generalizadas e cruzadas da Guerra dos Trinta Anos, este “direito da guerra e da paz”, com a sua regulação e ritualização dos conflitos, fora o grande sucesso do Nomos da Terra, a grande, se não a única, realização do direito internacional.

Schmitt sublinhou sempre a possibilidade da guerra como condicionante da paz e da ordem de convivência entre os Estados. Esteve sempre longe – e criticamente distante – de qualquer projecto mundialista de paz geral e perpétua de matriz kantiana. A partir de um realismo radical, acabava por olhar o direito internacional como um direito externo dos Estados; mas tendo vivido o seu tempo (1888 -1985 – o tempo das guerras mundiais e do fim do Euromundo) percebia o peso que tinha a visão ideológica da ordem internacional que viera de Versalhes – Wilson e a paz punitiva de Versalhes e depois FD Roosevelt cozinhando com Estaline e Churchill, em Ialta, a partilha do mundo.

Essa ordem internacional liberal começou por ser apenas “liberal” na Europa Ocidental e nas Américas, já que a URSS tinha a sua parte dos despojos da Segunda Guerra. Só depois de Reagan, de Gorbachev e do fim do comunismo passou a ser “internacional”, com os neoconservadores empenhados em exportar para todo o mundo, à força, se preciso fosse, o modelo americano de democracia e capitalismo.

A crise desse suposto liberalismo universal chegou antes da reeleição de Trump, mas Trump deu-lhe, ou está a dar-lhe, o golpe de misericórdia, com a guerra comercial começada e suspensa perante o fantasma da depressão.

No entanto, ao contrário do que a maioria dos comentadores e analistas pretende fazer crer, a política económica de Trump pode ser arriscada, pode ser disruptora, pode ter ou não bons resultados, mas não é o repente de um louco ou de um “empreiteiro” a brincar a rei do Mundo. Obedece a uma estratégia – de resto defendida por economistas respeitados e respeitáveis – e tem objectivos, como o de reindustrializar parte da América e enfrentar a China. China que, para Trump e para a sua equipa, aproveitou os últimos trinta anos de hegemonia benévola norte-americana para se agigantar economicamente, através de um capitalismo de direcção central, e para ganhar, através da “rota da seda” e de outras formas de softpower, grande influência no mundo.

Ou seja, Trump fixou a China como o schmittiano “inimigo principal” e conta enfrentá-la, fazendo-lhe a guerra possível. Sabe – sabemos todos – que depois das armas atómicas e da sua propagação e numa sociedade mundial de nações soberanas e poderosas governadas por nacionalistas realistas sem aspirações ideológicas, a guerra possível pelo poder – mesmo o poder para enfrentar o poder dos outros – depende de formas não letais de conflito.

Como o comércio, as tarifas e a sua reciprocidade e medida.

Politólogo e escritor. O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Diário de Notícias
www.dn.pt