A Guerra da Crimeia outra vez?
Entre 1853 e 1856 desenrolou-se a Guerra da Crimeia, opondo russos a uma boa parte da Europa e ao Império Otomano. O seu início? A ideia russa de proteção de populações ortodoxas e dos seus territórios, em colisão com os vizinhos otomanos. O seu espaço de conflito privilegiado? A península da Crimeia e o mar Negro. Mas, se à época a Rússia foi a derrotada, com custos muito elevados, hoje dificilmente o será.
O problema de ter como vizinhos potências militares e nucleares lideradas por um poder autocrático é o de, por mais que estas violem o direito internacional e por mais represálias que se despejem sobre si e os seus nacionais, provavelmente o resultado final não ser alterado. A Rússia está bem adaptada ao isolamento internacional. O presidente ucraniano já se apercebeu de que nunca a Ucrânia fará parte da NATO e só daqui por muito tempo, eventualmente, integrará a União Europeia. Assim, só um pragmatismo político, mesmo que orientado por valores, pode evitar uma guerra ainda mais longa e mais sofrida.
Claro que a confiança internacional sobre a Rússia ficará destruída durante décadas, bem como a sua economia sofrerá - e, com ela, todas as demais. Mas isso não é suficiente para levar à alteração das suas decisões que, ao contrário do Ocidente, não balançam com opiniões públicas, pela emocionalidade das redes sociais e da imprensa ou sequer por esse detalhe que são eleições. A pressão cívica ou o bem-estar das pessoas significa por lá algo de diferente e sem grande peso na decisão política.
A Europa o melhor que aqui pode fazer é procurar, com empenho real, um cessar-fogo e um acordo que permita aos Estados em causa refazerem as suas convicções, sem derrotas demasiado óbvias a serem assumidas. Caso a Rússia pretendesse a simples tomada da Ucrânia pela força, provavelmente já o teria feito. Ou não. Talvez este processo atual seja parte do plano, com um objetivo final já traçado de anular absolutamente aquele país. Mas, sendo uma ou outra a decisão, o melhor sempre será procurar ativamente e quanto antes um processo negocial que salvaguarde vidas e que crie um mínimo sério de estabilidade e previsibilidade na região.
Estar-se-á nesse processo a beneficiar o uso ilegítimo da força e da ameaça sobre a ordem e o direito internacionais? Sem dúvida. Mas qual a alternativa real a isso? Um conflito militar de carácter mundial? O risco nuclear? Perante o jogo em curso, os jogadores têm de o assumir e não teorizar sobre as regras do jogo que vêm nos manuais. E procurar proteger vidas, todas as vidas, não porque os combustíveis sobem de preço, não porque os bens essenciais podem vir a escassear, mas simplesmente porque são vidas humanas que estão em causa.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa