A guerra civil na alma de Israel
Desde a sua criação que a tensão entre o ideal democrático, a religião e o tribalismo/racismo é a natureza essencial do país. A legislação que o governo quer aprovar e a consequente revolta popular são só mais um episódio desse curto-circuito identitário.
Este domingo li duas notícias que combinadas operam uma espécie de nó cerebral. Numa, afiançava-se que o Irão está a seguir com muito interesse a revolta popular em Israel; noutra, referia-se o facto de Yair Netanyahu, filho do PM israelita, ter acusado os EUA de estarem a "financiar" os protestos contra o governo e respetiva proposta de reforma judicial (que muda as regras de nomeação e o poder do Supremo Tribunal).
Se não é desde logo evidente o motivo pelo qual achei esta combinação de notícias tão curiosa, explico: estando ele próprio desde setembro a braços com uma revolta popular contra a natureza do regime, o Irão, inimigo figadal de Israel, costuma acusar os EUA de estarem por detrás desses protestos. O encontro destes dois mortais inimigos na atribuição de responsabilidade aos americanos surgiu-me como mais do que uma coincidência irónica; sublinha as semelhanças que existem entre o regime teocrático iraniano e aquele que o atual governo israelita quer declarar.
Não exatamente por ambos (um formalmente, outro através de um familiar do PM) escolherem os EUA como potência desestabilizadora e "ingerente", mas pela atribuição da resistência interna a uma intervenção externa, deslegitimando-a: o que essa atribuição diz é que aqueles que se revoltam são agentes, conscientes ou não, de um outro Estado contra o país, logo traidores à pátria, nem "verdadeiros israelitas" nem "verdadeiros iranianos".
Essa deslegitimação foi sublinhada por Benjamin Netanyahu no seu discurso desta segunda-feira, quando, anunciando a suspensão da reforma judicial devido às manifestações massivas e à greve geral, falou de Israel como o bebé da fábula do rei Salomão, correndo o risco de ser "despedaçado" devido à ação de "uma minoria de extremistas (...) que querem levar-nos à guerra civil e que apelam à recusa de servir nas forças armadas, o que é um crime terrível".
Essa "minoria de extremistas criminosos" sendo, claro, quem se opõe à reforma que a presidente do Supremo, a juíza Esther Hayut, anunciou em janeiro significar, se levada a cabo, que "o 75º aniversário da independência de Israel será lembrado como o ano em que a identidade democrática do país sofreu um ataque fatal". É pois contra a morte da democracia israelita que as pessoas saem à rua, que os reservistas das Forças Armadas se recusam a servir, que patrões e trabalhadores se uniram para declarar a greve geral desta segunda-feira.
No mesmo discurso, qualificado pelo ministro da Justiça como evidência da "politização" do sistema judicial que a reforma visa combater, Hayut certificou que "uma das mais importantes funções dos tribunais num país democrático é assegurar proteção efetiva para os direitos humanos e civis. É a garantia de que o poder da maioria não se transforma na tirania da maioria".
Já o líder da oposição, Yair Lapid, que dirige o partido centrista liberal Yesh Atid, reagiu às palavras da magistrada garantindo querer "lutar ao lado dela pela alma de Israel".
Mas o que é realmente "a alma de Israel"? E a que ponto se pode considerar como "defesa contra a tirania da maioria" um Supremo Tribunal que em 2018, já com esta presidente, deixou passar a lei que declara Israel como "a pátria histórica do povo judaico" e o "direito exclusivo" desse povo, nesse território, "à autodeterminação", assim como o "interesse nacional" dos colonatos em território palestiniano e a desqualificação do árabe de língua oficial para "língua protegida"? Como compreender sequer que se veja assim um tribunal que nunca obstaculizou a negação da cidadania israelita a palestinianos de Gaza e da Cisjordânia que casem com israelitas ou residentes de Israel? (Note-se que esta restrição, operada por uma disposição legal de 2003 que era suposto ser temporária e tem sido sucessivamente renovada, não se aplica quando israelitas casam com não-judeus ou com nacionais da maior parte dos países).
Aliás há muito que se sucedem os avisos quanto à morte da democracia israelita: em 2018, o constitucionalista Mordechai Kremnitzer, do Instituto para a Democracia em Israel, declarou que a aprovação da lei citada acima "tornou a discriminação constitucional", enquanto o colunista árabe israelita do diário Ha"aretz, Abed Azab, afirmou (ironicamente) apoiar essa lei, já que assim ficava claro que Israel não é "um país democrático normal".
De resto, as questões sobre o caráter democrático do regime começam - como reconhece uma secção da página do parlamento israelita dedicada aos projetos de Constituição para o país (que não tem até hoje uma lei fundamental enquanto tal, mas várias "leis básicas" ou "fundamentais" que fazem as vezes de textos constitucionais) - na Declaração de Independência. Esta afirma a "completa igualdade" de todos os cidadãos "independentemente da religião, raça ou sexo", garantindo "liberdade de religião, consciência, língua, educação e cultura", mas, ao mesmo tempo, o caráter "judaico" de Israel. Esse caráter "judaico e democrático" é também declarado pelas "leis básicas/fundamentais" de 1992.
Como é que se afirma a igualdade entre todos os cidadãos num país que se afirma "judaico", e que desde 1952, com a "lei do regresso/retorno", criou uma definição de judeu, para efeitos de atribuição de nacionalidade israelita, baseada nas leis nazis de Nuremberga (ou seja, trata-se de alguém com uma avó ou avô judeu, ou casado com alguém com pelo menos um avô judeu)?
Um país que se fundou com base na perseguição secular a um grupo e que assume, para reconhecer os seus como seus, os critérios operacionalizados para o massacre nazi; um país ancorado na definição de uma identidade fugidia, que não é nem religiosa (mas é), nem étnica (mas é), nem cultural (mas é), e que, criado como resultado do mais selvático racismo, se constrói e afirma, ao longo destes 75 anos, como um Estado racista e apartheidista.
"Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos, mas sim o Estado-nação dos judeus e apenas deles", afirmou em 2019 Netanyahu. É a declaração política de um fascista-racista, certo. Mas é também, malgrado a resistência, a vontade e a coragem de todos os democratas israelitas - que existem e são muitos - uma constatação.