A grande derrotada
Há 24 semanas que os bielorrussos marcham contra o regime de Lukashenko. Há quase dois anos que ativistas pela democracia são perseguidos em Hong Kong. Há já três dias que se sai à rua na Rússia em defesa de Alexei Navalny, líder da oposição a Vladimir Putin. Em Yakutsk, na Sibéria, os protestos realizaram-se sob uma temperatura de 52 graus negativos.
Ontem, o país com o maior número de casos de coronavírus no mundo por milhão de habitantes também não prescindiu da sua cidadania. Apesar da dramática situação sanitária, a abstenção foi menos trágica do que o receado. Os portugueses encheram filas. Não se tomou a democracia por garantida. Marcelo Rebelo de Sousa foi reeleito à primeira volta e o poder político poderá, todo ele, regressar à resolução da crise pandémica.
Com isso, há leituras políticas que se impõem.
Se a esquerda, estando desunida, foi amplamente derrotada, a direita, hoje tão diversa, pode reclamar triunfos.
Pela primeira vez em cinco anos, ganhou-se uma eleição nacional. Claro que com o endorsement indireto do primeiro-ministro, e direto de uma mão-cheia de senadores do PS, mas com um candidato oficialmente apoiado pelo PSD e pelo CDS, que se identificou como oriundo da "direita social":
Marcelo Rebelo de Sousa.
Mais surpreendente do que isso foram os dois dígitos alcançados pelo líder do Chega, André Ventura, e a implementação regional que conquistou no Alentejo.
O resultado digno da primeira candidatura liberal na história de umas presidenciais portuguesas, encabeçada por Tiago Mayan Gonçalves, é também merecedor de nota.
Por outro lado, se Marcelo foi o óbvio vencedor das eleições de ontem, há derrotados que partilham uma coisa entre si: vêm da esquerda.
João Ferreira, rosto de futuro do PCP, e Marisa Matias, prévia proprietária de um belíssimo resultado, desiludiram. Ana Gomes, a única candidata da área socialista, ficou atrás dos números conseguidos nas derrotas de Soares, Alegre ou Sampaio da Nóvoa. Só Maria de Belém havia atingido um grau de irrelevância semelhante.
Na reação de cada um aos resultados, todos falaram de André Ventura.
A derrota maior, todavia, não foi pessoal ou partidária. Foi simbólica.
Durante a campanha eleitoral, se pensarmos bem, nenhum dos candidatos defendeu o legado da solução política conhecida como "geringonça". Nem Marisa Matias, do BE, nem João Ferreira, do PCP, pouparam os executivos minoritários chefiados por António Costa desde 2015. O Serviço Nacional de Saúde "em estado crítico" e a Constituição "por cumprir" foram críticas atiradas sem hesitação contra a governação socialista. Até Ana Gomes, com a independência que lhe é reconhecida, atacou o Presidente da República pela sua proximidade ao governo.
Como é que a aliança parlamentar à esquerda, tão elevada e louvada durante os últimos cinco anos, chegou às presidenciais sem porta-estandarte é uma questão que fica no ar, que levanta ventos de mudança de ciclo.
Há 40 anos, num previdente poema sobre a alma nacional, José Mário Branco sugeria uma resposta. Cantava ele: "Votas à esquerda moderada nas sindicais, no centro moderado nas deputais e na direita moderada nas presidenciais."
Como se viu ontem, não estava errado.
Colunista