A fuga de Alcoentre é sintoma de algo mais profundo

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A recente fuga de dois reclusos da prisão de Alcoentre - entretanto capturados - constitui mais uma evidência do estado deplorável em que se encontram muitos serviços públicos. Segundo a ministra da Justiça, a fuga teve lugar numa altura em que estavam ao serviço apenas 17 guardas, numa prisão com cerca de 400 reclusos. Rita Alarcão Júdice afirmou ainda que a prisão de Alcoentre tem 30 guardas em situação de baixa médica. Em números redondos, são 23 presos para cada guarda no ativo. Provavelmente, só não fogem mais reclusos porque estes sabem que no mundo digital em que vivemos é muito difícil sobreviver na clandestinidade, a menos que contem com uma rede de apoio muito forte à sua espera no exterior.

Porém, este tipo de situações não são exclusivas do sistema prisional e acontecem em praticamente toda a administração pública. Temos prisões sem guardas, hospitais sem médicos e enfermeiros, escolas sem professores, tribunais sem oficiais de justiça e repartições de Finanças sem equipas suficientes. Importa refletir sobre as razões para esta situação, que se explicam com as opções que foram feitas pelos sucessivos governos ao longo das duas últimas décadas. Houve outras prioridades do ponto de vista político orçamental. Porém, Portugal não está sozinho perante esta tendência para a degradação dos serviços públicos. Em França e no Reino Unido, por exemplo, há muito que este tema está na ordem do dia. Nos Estados Unidos, para além dos serviços propriamente ditos, há a questão do declínio de infraestruturas como os aeroportos e as autoestradas, que em muitos casos foram construídas há 30 ou 40 anos e ficam bastante atrás das que existem em muitos países europeus e asiáticos.

No nosso país, a própria transformação digital foi por vezes mal feita, apesar dos investimentos realizados, porque o que se fez, frequentemente, foi digitalizar a burocracia. A saúde é exemplo disso: custa a entender que ainda não exista uma base de dados única, onde os profissionais de saúde possam consultar os dados clínicos dos doentes, quer tenham de o atender em Freixo de Espada à Cinta ou em Cascais. Não se compreende também porque é que as teleconsultas continuam a não estar disponíveis para a maioria da população, até como forma de despistar casos menos graves, de modo a evitar as idas desnecessárias às urgências. Razão para que nos questionemos: com tanto dinheiro do PRR (que funciona como uma espécie de segundo Orçamento do Estado, para financiar o investimento público que o Estado deixou por fazer durante a última década), como é que este tipo de medidas ainda não foram implementadas?

Ainda assim, os portugueses não estarão particularmente descontentes com a qualidade dos serviços públicos. De acordo com a edição mais recente (2023) do estudo Governament at a Glance, da OCDE, a maioria da população portuguesa estará satisfeita com os serviços públicos, mas os níveis de satisfação nem sempre estão alinhados com as médias dos países que integram esta organização internacional. Segundo o estudo, 63% dos portugueses estão satisfeitos com o Serviço Nacional de Saúde e 71% fazem uma avaliação positiva da educação pública, mas estes valores comparam com 68% e 67%, respetivamente, no conjunto dos países da OCDE. Nos serviços administrativos, a satisfação em Portugal fica nos 54%, contra uma média de 63%. Estes números não são particularmente desanimadores, mas também não devem ser motivo de orgulho. Refira-se ainda que o número de funcionários públicos não tem parado de crescer, de 648 mil em 2014 para os atuais 758 mil, mas a percentagem da população ativa que trabalha na administração pública (15%) permanece abaixo da média da OCDE (18,6%).

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