A fome que passamos deixará todos sem voz

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O que é um jornalista? Eu acredito que é, em primeiro lugar, uma testemunha. Somos os olhos que fitam o que se quer ocultar, a voz que denuncia o que se quer calar. Um jornalista é, por isso, um incómodo. O jornalista é um empecilho para as injustiças, um entrave a negócios obscuros, uma areia na engrenagem de um sistema viciado. Isso, claro, se estiver a fazer bem o seu trabalho.
Aquilo que o jornalista não é nem pode ser é um justiceiro, um fazedor de verdades. Um jornalista não pode ver o mundo a preto e branco, pela lente do seu umbigo. Tem de ter a humildade de entender o outro, de o saber ouvir, de partilhar a sua história, mesmo quando ela é incómoda ou quando é um bandido que a conta.

E é por ser estas coisas todas - quando o conseguem ser verdadeiramente - que os jornalistas sempre foram um alvo. A diferença é que hoje são descartáveis. E muito por culpa dos próprios, há que dizê-lo. Deixámos tantas vezes de fazer o nosso trabalho, que hoje parece possível que ele seja substituído por uma coisa que nunca será sequer parecida com o que fazemos e que circula nas redes sociais, sem filtro, nem edição, sem regras, nem ética e, sobretudo, aparentemente sem que ninguém a pague.

Num sistema em que tudo é pesado em euros ou dólares, aceitámos dar de borla o que custa tanto a fazer. E esse foi um passo para que recuássemos nas condições que temos para trabalhar, fragilizando-nos, mas acima de tudo fragilizando aquilo que produzimos.

Chegados a este ponto, houve logo quem percebesse a vantagem de nos desacreditar, de nos controlar, de nos calar. São sempre os mesmos. Não é difícil perceber quem são aqueles que incomodamos. E, claro, estamos nas mãos deles. Sempre estivemos, estamos agora ainda mais. Porque que conseguiram (ou conseguimos) que todos se convencessem de que o que fazemos não vale nada e, para trabalhar, temos de andar de mão estendida a quem possa pagar.

Sugiro que olhemos agora para a Argentina. O governo assumiu o controlo dos meios públicos, anunciou a sua privatização, suspendeu por um ano os planos de investimento público em publicidade, reprimiu os trabalhadores da imprensa nas manifestações de rua contra a austeridade do presidente anarcocapitalista Javier Milei. A ministra da Segurança, Patricia Bullrich, já pediu desculpa, mas entretanto 35 repórteres foram feridos pelas forças de segurança, durante a cobertura de um protesto em frente ao Congresso.

Na Argentina, os sindicatos dos jornalistas convocaram uma greve, anunciada na rede social X com uma frase perturbadora. “Com salários de fome, não há jornalismo nem direito à informação”. E eu sublinho a palavra “fome”, porque ela não é escrita ao acaso. 
Num país em que a inflação foi superior a 20% em janeiro e no último ano escalou 254,2% face ao ano anterior, a fome é um instrumento económico. E podem perguntar-me agora: num cenário desses, o que é que interessa o que estão a passar os jornalistas? O que é que distingue a fome deles da dos outros argentinos?

E eu respondo: uma barriga vazia é uma barriga vazia. Mas uma imprensa famélica é um país sem olhos nem voz. É o início do fim da democracia. Porque é quando ninguém está a olhar que se cometem as maiores atrocidades. E nós estamo-nos a esquecer de que esse é o poder do jornalismo e que esse é o poder do povo. O poder que garante que a maioria não se deixa capturar por uma minoria e que as minorias não são atropeladas pela maioria. Essa é a consciência comum que serve de chão a uma sociedade democrática. E agora perguntem-me: O que é temos a ver com isso? E reflitam.


Jornalista

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