A fome que aqui está e a que aí vem
No Camboja, onde as pessoas vivem com regras de prevenção da covid fortemente repressivas, noticiava-se que havia fome em plena capital, criada agora pelo facto de os moradores de diversas partes da cidade terem sido simplesmente proibidos de sair de casa, sem aviso prévio. As autoridades distribuem aos confinados pequenas doses de arroz e conservas de peixe, com queixas generalizadas de insuficiência nos alimentos distribuídos, incapacidade de distribuição e aleatoriedade nas entregas.
Os trabalhadores, assim proibidos de trabalhar, deveriam receber 75 dólares por parte do governo - não por mês ou por semana, simplesmente 75 dólares. Este pagamento foi, contudo, suspenso ao fim de dez dias, com a justificação de que os fundos eram necessários para a distribuição de alimentos e para comprar vacinas. A larga maioria nunca o recebeu, muitos estão impossibilitados de pagar a renda de casa, muitos não têm como alimentar os seus filhos.
No Peru, o país com a mais elevada taxa de mortalidade por covid no mundo, já com perto de 200 mil mortos, a epidemia e a pobreza adicional por esta provocada levou milhares a ficar sem casa em Lima. Vivem agora em barracas de lonas e panos, por si montadas, nos arredores.
Nas Filipinas, doentes com covid são recusados à porta dos hospitais, incapazes de os receber. Familiares - os mais abonados - metem-se à estrada com os seus doentes e fazem muitas horas e centenas de quilómetros para fora dos centros urbanos em busca de um qualquer espaço de saúde que os possa aceitar, muitas vezes apenas para os ver morrer.
A Tailândia, um dos grandes centros de turismo do mundo e com uma economia em boa parte dependente dos turistas estrangeiros, depois de ter proibido inicialmente a entrada no país de estrangeiros não residentes, passou a exigir um teste PCR feito até 72 horas antes do voo, um novo teste PCR à chegada e uma quarentena obrigatória inicial de 14 dias em hotéis especificamente indicados pelas autoridades. A pouca vontade de viajar, nestes tempos e nestes termos, associa-se à impossibilidade prática de a larga maioria o poder fazer, pelo tempo de quarentena e pelos custos envolvidos. Imaginar-se as ruas de Banguecoque ou as praias tailandesas sem turistas é saber que há seguramente muita gente a passar fome.
Esta pobreza adicional de hoje, em tantos espaços do mundo, que chegou sem aviso e que dura há demasiado tempo, é apenas assim o prelúdio da outra que se lhe seguirá.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa