A Filosofia e as Humanidades: o ataque ao pensamento na educação portuguesa. (ao Ministro da Educação, Fernando Alexandre)

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Está em processo um verdadeiro ataque às Humanidades, visível nos exames cheios de exercícios com cruzinhas e perguntas opcionais, preenchimento de espaços em branco, exercícios de correspondência, os mais absurdos. O se está a fazer com a educação em Portugal? Que os professores sejam meros executantes acéfalos das directrizes dos mais obscuros dos funcionários do Ministério da Educação e desse “Estado dentro do Estado” que é o obscuro IAVE, casa-mãe de muitos professores que, detestando leccionar, aí encontram lugar para, descansadamente, darem livre-curso às mais abstrusas teorias ou experiências educativas. Os exames nacionais são, de há 2vi0 anos, a prova irrefutável disso mesmo.

Urge que se compreenda bem que as decisões políticas dos últimos governos visam uma verdadeira e sórdida planificação contra aquilo que, depois, esses mesmos decisores da educação gostam de erguer como bandeira - a ausência de pensamento crítico nas gerações mais novas. O que é óbvio na argumentação do ME e de ministros de agora e dum passado recente é a mais profunda hipocrisia das suas palavras.

De nada vale lamentarem-se ou constatarem a ausência de pensamento crítico quando, subordinados a exames nacionais que não exigem redacção e leitura sérias, e quando os programas são modos de infantilização crescente, os docentes são meros “facilitados de aprendizagens”. Leia-se: executores de programas curriculares de que está ausente esse desejado pensamento crítico. Ora, o pensamento crítico só se aprende lendo e escrevendo seriamente. Com Literatura e Filosofia, com História e textos das ciências. O pensamento crítico não nasce de geração espontânea no fim de 12 anos de ensino em que ninguém lê e escreve, pensa ou problematiza, conhece vocabulário crítico e tem memória dos textos. Num debate de há dias, com Fernando Alexandre na RTP, um dos rostos mais responsáveis pela degradação educativa, Maria de Lurdes Rodrigues, lá veio perorar as suas teorias… De debate nada houve, mas, mais uma vez, quiseram doutrinar-nos a respeito da importância da digitalização na educação. Esquecem-se, porém, que sem conhecimento cultural prévio, sem universo referencial, é inútil a digitalização: só aprofunda novos modos de distracção e de alienação nas aulas.

Um ministro da educação que estivesse verdadeiramente a par do grau de alienação e de ignorância que grassa pela classe docente e pelos estudantes - todos consumidores das mil e uma plataformas digitais que esta sociedade tecnofascista todos os dias nos impõe - exigiria, com mensagem ao país, e secundado pelo seu Primeiro-Ministro e pelos Ministros da Cultura (ministério diluído neste pobre rectângulo) e da Economia e das Finanças, o regresso ao livro. Exigiria a urgente formação dos professores visando a implementação de uma leccionação ancorada no estudo do texto literário e nos documentos da História. Um Ministro da Educação digno desse nome jamais seria conivente com o poder dos elefantes tecnológicos - expressão feliz do saudoso Vitorino Magalhães Godinho, que foi Ministro da Educação - antes defenderia, num país de gente sem linguagem, práticas de redacção que, hoje, na sua maioria, os estudantes não dominam: a síntese, a dissertação, o comentário crítico, o resumo, mesmo a cópia… Um ministro da educação fiel aos ideais de liberdade e de democracia não esqueceria uma das teses da educação nascida na Grécia: “Conhece-te a ti mesmo.” O actual modelo educativo português, e, na verdade, toda a sociedade, dos pais aos governantes, da comunicação social aos agentes educativos, professores incluídos, tem contribuído para a brutalização da vida dos mais. Não há uma relação directa entre a decadência da nossa vida política e a a degradação da qualidade do ensino em Portugal?

Wittgenstein, professor, filósofo. 
Wittgenstein, professor, filósofo. 

Claro que a defesa de um ensino ancorado na análise e comentário de textos colide com a visão provinciana dos especialistas. Esses estão sempre up to date na educação. Esquecem, estrategicamente, o óbvio: é que países onde a digitalização se fez antes de nós, todos recuaram nessas políticas. Tese: regressaram aos manuais em papel, bem como a práticas didáctico-pedagógicas clássicas. O clássico sempre perdura, as modas passam…

Ora bem, ilustrando tudo isto temos o Exame Nacional de Filosofia, o qual constitui um ataque soez não só a esta disciplina, mas a todas as outras disciplinas e a todos os professores, sejam eles de Humanidades, sejam de outras áreas curriculares. É que, no fundo, a Filosofia, já reduzida a apenas dois anos de frequência, e transformada em árida disciplina onde as tabelas de verdade reduzem à mentira o espírito de história das ideias que é o que esta disciplina deveria ser (e foi até aos anos de 2004/05), serve de disciplina-cobaia para o que se quer: esmagar o pensamento em Portugal. O exame digital que este ano se fez em Filosofia é já um ensaio geral para que todos venhamos a ser fazedores do Nada, docentes acéfalos, acríticos. Funcionários e não docentes, tais quais esses novos professores, os dinâmicos e proactivos professores da ideologia ecrã-idiota, os adeptos do rigorismo serôdio, salazarento: os adeptos da “uniformização de critérios”… isto é: do pensamento e das acções.

Neste sentido, o que se está a fazer na educação em Portugal é, por via de uma verdadeira política de terraplanagem das artes e das humanidades a preparar a sociedade futura portuguesa para um modo acrítico de ser e de estar neste país. O que vemos é mesmo uma política de terraplanagem em relação à língua portuguesa. Os exames digitais anunciam o óbvio: a dominação do Poder sobre as gerações desmemoriadas nascidas já no século XXI. Depois de 12 anos sem terem de ler nada de nada, nem de saber escrever seja o que for, é da mais leviana falsidade dizer-se que, pelo facto de serem exames digitais, os alunos estão a ser preparados para um mundo cada vez mais competitivo. O que acontece é justamente o contrário: as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade.

Noutro plano - o do emprego, o do trabalho de milhares e de milhares de professores - a digitalização anuncia o desemprego de muitos que, legitimamente, são professores de facto e recusam verem-se convertidos em meros tutores online, técnicos que acompanham, à distância, estudantes que, rigorosamente, não conhecem. É, pois, o fim da Escola e da Universidade, futuros centros de informática donde estão ausentes a cultura democrática e investigação séria, onde esplende a frase de Delfos: “conhece-te a ti mesmo.” É isto que queremos em Portugal?

A digitalização corrompe a educação e está contra a própria liberdade da palavra, dos corpos, do movimento próprio, performático, que nasceu com a Filosofia, com a Poesia, com a Matemática. Fernando Alexandre, Professor e colega, Sr. Ministro, lembre-se da tese de Heidegger: sem língua de tradição, resta o mais nefando tecnicismo, a desumanização e, no limite, a barbárie.

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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