A fera na selva

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Há momentos na vida em que sentimos estar num intervalo. Já ninguém se lembra dos intervalos nos cinemas, quando os filmes eram grandes e as pessoas não tinham pressa e iam flanar pelos foyers, ou dos interlúdios com que a televisão (canal único) nos brindava por ocasião das suas frequentes falhas técnicas. Aquilo a que poderemos chamar, à falta de melhor termo, “civilização contemporânea”, foge aos intervalos, aos interlúdios, a qualquer suspensão do espetáculo permanente com que nos quer preencher a vida.

No entanto, há momentos em que pressentimos que qualquer coisa nunca vista vai acontecer, que estamos à beira de uma redenção ou de um apocalipse, em que, na bela imagem de Henry James, aguardamos que a fera surja da selva.

Mas não sabemos. A política internacional parece encaminhar-nos para uma guerra nuclear total, mas pode ser apenas uma sequência de bluffs, a política europeia encaminha-nos para um impasse em que, à competição entre programas políticos, se substituiu uma política única de direita, com uma extrema-direita em ascensão, a política nacional aguarda um orçamento negociado entre liberais e socialistas, o que pelo menos nos livraria de ficarmos reféns da extrema-direita, como em França. Mas toda esta conjuntura leva cada vez mais a sentirmo-nos num intervalo da História, em que nos cabe aguardar, seja a bomba nuclear, que fará realmente alguma diferença, sejam novas eleições, que nada vão mudar. Esse sentimento de intervalo deixa-nos, perigosamente, passivos e distraídos.

Continuando com Henry James, a fera pode realmente saltar ou, pelo contrário, deixar-nos à espera, neste sentimento de intervalo que nega a voraz velocidade da História que, como dizia Marx, age como a toupeira e avança pelos subterrâneos, fora da nossa vista. O intervalo é uma ficção, mas lembra-nos que a História se faz à revelia da nossa consciência.

Temos a maldição de viver em tempos interessantes, como dizem os chineses. Mas, mesmo reconhecendo que este nosso sentimento de intervalo é só uma máscara da realidade e uma fuga, talvez nos apeteça sair do comboio cada vez mais rápido da História e gozar uma ilusão de paragem. Porque temos um espaço de vida que devemos preservar desta locomotiva enlouquecida que nos leva para onde não sabemos, deste navio fantasma, em que os algoritmos vieram substituir os marinheiros mortos. É a nossa vida, por pobre que seja, e há que defendê-la.

A nossa vida são também os livros que nos fizeram sonhar, os momentos em que nos sentimos inteiros, na paixão ou na luta, as causas que defendemos e todos os seres que amámos e amamos. É essa rede, que é de cada um de nós e é de todos, que temos de opor às grandes redes que nos dominam, movidas pelos algoritmos e motivadas pela ganância.

Quando Voltaire, depois dos desaires de Cândido, nos aconselha a cultivarmos o nosso jardim, não está de modo algum a renunciar a “écraser l’infâme”. É que o infame está hoje nas máquinas de morte e de ganância que avançam pelos subterrâneos da História, como as toupeiras de Marx. O nosso jardim depende de não deixarmos essas máquinas arrasá-lo. A nossa vida depende de não nos deixarmos vencer pelo navio fantasma.

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