A extrema-direita é feminista?

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Os dois políticos mais mediáticos da extrema-direita da Europa ocidental, entre Berlim e Lisboa, são, agora, duas mulheres: Marine Le Pen (duas vezes segunda candidata presidencial mais votada em França e que lidera o Rassemblement National, o terceiro grupo parlamentar do país) e, desde domingo, Giorgia Meloni, presidente do Fratelli d"Italia, o partido mais votado nas eleições antecipadas transalpinas e provável próxima primeira-ministra do país.

Isto não podia acontecer com o fascismo tradicional, aquele que chegou a governar, no tempo das guerras mundiais, a Itália, a Alemanha, a Áustria, a França de Vichy, a Eslováquia, a Espanha e Portugal.

Para o fascismo o papel da mulher era praticamente limitado ao de garantir a reprodução da raça dominante, de cuidar do lar e de criar as crianças. Houve algumas exceções, que apenas confirmaram a regra: estou a lembrar-me, por exemplo, da realizadora e propagandista do nazismo, Leni Riefenstahl.

Hoje a extrema-direita europeia, cada vez mais poderosa e mais influente, aparece liderada por mulheres e, até, por mulheres lésbicas, como acontece na Alemanha, onde a líder parlamentar e co-líder da Alternative für Deutschland , Alice Weidel, se afirma homossexual e apoiante da união civil para casais gays e lésbicas, embora se mantenha contra a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Esta é uma diferença relevante entre o fascismo do século XX e os seus herdeiros do século XXI: a luta feminista, protagonizada no século XX , não unicamente mas principalmente pela esquerda, combatida claramente na Europa pela direita de raiz fascista ou por setores católico-conservadores que foram cúmplices ou coniventes com o fascismo entre guerras, deixou no século XXI de marcar uma divisão clara do ponto de vista ideológico.

Este facto, que me parece indesmentível, confronta o que resta da esquerda social-democrata europeia, bem como os seus sucedâneos. Muitos desses partidos abandonaram, na década de 1990, a centralidade do marxismo e optaram pelo pragmatismo político, para apanhar um lugar entre os poderosos da globalização.

Em troca dessa desistência, esta esquerda apostou na valorização dos movimentos de direitos das mulheres, das minorias étnicas ou de género, e de defesa do ambiente, objetivos certamente meritórios, pertinentes e essenciais.

Porém, essa esquerda desligou essas lutas daquilo que eles próprios apelidaram de "velha conceção da luta de classes". Foi assim secundarizada, à esquerda, a defesa empenhada, visível e clara da classe trabalhadora contra os abusos do capital, dos grandes bancos ou das grandes empresas, pois isso colocava em causa a possibilidade de terem acesso a governos aceites pacificamente pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu, pelo FMI, pelo Banco Mundial, por Wall Street, pela City de Londres e por todo o poder financeiro que, na sequência do fim da Guerra Fria, acabou por mandar na política mundial.

Cada avanço na luta pelos direitos das mulheres, das minorias étnicas ou de género não foi, assim, acompanhado por um reforço de poder das classes trabalhadoras mais desfavorecidas (incluindo, obviamente, as mulheres, as minorias étnicas ou de género que pertencem a essas classes) e isto criou entre estes desfavorecidos o sentimento de que, para além da secular exploração tradicional pelo capital, existe agora uma nova discriminação.

Para o proletariado, o que está a passar-se é que há uns "desprotegidos de primeira" que recebem toda a atenção e empenhamento na luta política, enquanto eles próprios passaram a ser uns obscuros "desprotegidos de segunda". Isto alimenta o ressentimento e dá todo espaço para, por exemplo, o proletariado branco norte-americano e europeu ser sensível aos argumentos racistas ou xenófobos da extrema-direita sobre imigrantes - e muitos, sentindo-se enganados pela esquerda, votam mesmo na extrema-direita, que lhes acena com a promessa da expulsão do pessoal político que os atraiçoou, critica a globalização que os oprime e jura acabar com a proteção discriminatória dos "desprotegidos de primeira".

Face a este efeito, perverso e irónico, é mesmo natural que o partido de Giorgia Meloni possa pugnar por "Deus, Pátria e Família" (slogan do movimento fascista Ação Integralista Brasileira, criado na década de 1930 e também adotado pelo Estado Novo português) e, ao mesmo tempo, até possa parecer feminista - seja qual for o ângulo de análise, face à inaptidão desta esquerda que adora a globalização, a extrema-direita sai sempre a ganhar.

Jornalista

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