A Extinção da Censura ensinou a escrever
O 25 de Abril tirou-me o sono às quatro e meia da madrugada. A recomendação através da rádio, de permanecer recolhido em casa “com a máxima calma” era impossível a qualquer jornalista. Obrigou-me a ir logo para redação e a solicitar, devido às funções que exercia, a presença dos meus colegas para acompanharem os acontecimentos e prepararmos o jornal do dia seguinte.
Restituiu a liberdade de informação, de reunião e de crítica. Aboliu a imposição do pensamento único. Promoveu a formação de partidos. Cerrou as grades das prisões políticas de Caxias, do Aljube, e de Peniche. Abriu as portas do campo de morte do Tarrafal.
Assisti, entretanto, ao cerco da PIDE e do Quartel do Carmo, à saída ruidosa de Marcello Caetano, numa chaimite, em direção ao Regimento de Engenharia na Pontinha. Através de dois amigos consegui entrar, ver e ouvir o que se passava e obter declarações de António de Spínola. Tinha, aliás, colaborado na ponta final de Portugal e o Futuro.
A primeira página d’O Primeiro de Janeiro, de 27 de abril destacou, com o maior relevo, a imediata restituição da liberdade de imprensa, a libertação dos presos políticos, a possibilidade do regresso dos exilados políticos, a extinção da DGS e da Legião Portuguesa. Constam da versão corrigida do Programa da Junta de Salvação Nacional.
Enquanto repórter e redator do Diário de Notícias (1960 a 1967), não me agastaram os problemas com a Censura. Mas ao desempenhar o cargo de chefe da redação em Lisboa d’O Primeiro de Janeiro (1968 a 1980), em acumulação com A Capital, sofri os efeitos drásticos da censura e não me restam dúvidas acerca da estupidez dos censores. Contudo, deixaram cicatrizes em todos os que sentiram a repressão das suas garras. Acompanhei os últimos anos do Salazarismo, todo o Marcelismo, a euforia do 25 de Abril, a agitação do Gonçalvismo, a transição para a democracia.
A Constituição Política da República estabeleceu as regras para consolidar um Estado de Direito. Enumerou os objetivos para governar em Democracia. Reconheceu as autonomias regionais e deu início à descolonização possível e tardia, com todas as consequências que daí resultaram.
Celebrar o 25 de Abril é obrigatório para os que se empenharam nos vários ciclos da mudança que incidiram nas áreas mais significativas da realidade portuguesa. Permitiram, sejam quais forem as lacunas, um Estado republicano, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural.
Todavia, António Sérgio alertou para “a nossa obcecação do osso, do morto, do antepassado, em proporções atemorizadoras e quase trágicas”. Assim comentava uma passagem d’A Relíquia, de Eça de Queirós, onde o famoso Topsius interpelava o Raposão que, ao viajar na Palestina, ia sempre acompanhado pelos ossos dos seus avós “enrolados em papel de embrulho”.
O culto do osso representa - ainda segundo António Sérgio - um dos traços dominantes da cultura portuguesa: a preocupação excessiva com os mortos, em contraste com uma incapacidade generalizada para lidar com o presente. Daí sucederem-se as comemorações, as trasladações e as guerras e guerrilhas em torno da memória.
O jornalismo, invariavelmente, repetia fórmulas vazias de conteúdo, que se introduziam no princípio, no meio, ou no fim das notícias e das reportagens. Era uma fatalidade de todos os dias e de todas as noites, antes do lápis azul e dos carimbos dos coronéis. Como se isto não bastasse existia nas secretárias dos chefes e subchefes de redação e dos seus subservientes acólitos um primeiro lápis azul.
Servia para justificar o repelente exercício da função que, segundo alegavam, visava não prolongar o exame prévio nas provas tipográficas, simplificar o fecho do jornal, por o mais cedo possível a edição na rua. Em termos concretos Eça de Queiroz já escrevera a Ramalho Ortigão: “Que estranha espécie a daquele bom jornal! É a imbecilidade meticulosa e grave!”
A extinção da Censura, entre as grandes reconquistas do 25 de Abril, ensinou-nos a escrever. Eu jornalista assim me confesso.