Unidos na crise, órfãos no comando: o paradoxo estratégico da 'Preparedness Union'

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As sirenes do futuro estão a soar, mas a Europa ainda discute quem segura o leme.  A nova Estratégia para uma “Preparedness Union”, apresentada este mês pela Comissão Europeia e pela Alta Representante, representa, em muitos aspetos, um avanço relevante na narrativa política da União.

Reconhece, com rigor, que entrámos numa era de crises sistémicas - naturais, tecnológicas, sanitárias, híbridas e geopolíticas — e que a resposta já não pode ser apenas sectorial ou reativa. A proposta pretende construir uma União capaz de antecipar, resistir e responder, com base em resiliência, coordenação multinível e envolvimento da sociedade.

Contudo, no momento da decisão, persiste uma dúvida essencial: quem comanda na hora zero?

A proposta acumula painéis de monitorização, forças-tarefa, catálogos de treino e diretrizes operacionais. São ferramentas úteis, mas não estruturam uma resposta em tempo real. O modelo institucional europeu continua preso a uma lógica de coordenação intergovernamental que, em contextos de crise simultânea e transfronteiriça, revela-se lenta, redundante e, por vezes, inoperante. Faltam instrumentos de comando com autoridade funcional.

Neste contexto, a ausência de uma cadeia de comando operacional, com capacidade de decisão e execução, traduz-se em lentidão, redundâncias e ineficiências.

O Emergency Response Coordination Centre, central na resposta civil da Comissão, permanece sem poder executivo. O Integrated Political Crisis Response do Conselho facilita partilhas, mas não decide. O Crisis Response Centre do SEAE opera de forma paralela, distante da gestão interna. 

A nova proposta de um "EU Crisis Coordination Hub" reproduz esta arquitetura: mais um centro, sem alterar o défice de decisão.

Este modelo leva a um ciclo de subsidiariedade até ao colapso: os Estados-Membros assumem a linha da frente até ao momento em que já não conseguem responder — e só então se admite o envolvimento europeu. Com frequência, demasiado tarde.

A Estratégia é conceptualmente ambiciosa. Enuncia a necessidade de uma mentalidade de preparação permanente, articulação entre dimensões civis e militares, convergência entre segurança interna e ação externa, e envolvimento multissetorial da sociedade. Mas esta visão carece de musculatura política e de soluções institucionais à altura da urgência. As cláusulas de solidariedade e assistência mútua permanecem juridicamente válidas, mas politicamente inertes. Os exercícios conjuntos previstos não têm caráter vinculativo. E o investimento continua condicionado por ciclos orçamentais rígidos, incompatíveis com a volatilidade das ameaças contemporâneas.

Ao mesmo tempo, a interoperabilidade técnica e jurídica entre sistemas nacionais é escassa. As estruturas de alerta, comunicação e mobilização operam com lógicas e linguagens distintas. A tão invocada dupla utilização de capacidades civis e militares continua a ser mais declarativa do que operacional.

O tempo político europeu é incompatível com o tempo real das crises contemporâneas. O ciclo institucional da UE — lento, intergovernamental, com múltiplas camadas de aprovação — não foi desenhado para responder a pandemias, ciberataques, sabotagem de infraestruturas críticas ou campanhas coordenadas de desinformação. No entanto, é esse mesmo ciclo que estrutura a resposta da União. A UE é a única entidade com escala, legitimidade e instrumentos para enfrentar ameaças transnacionais. Mas continua presa à sua própria arquitetura de consenso, fragmentação e cautela jurídica.

Importa, por isso, repensar a arquitetura da resiliência europeia com maior ousadia. Uma União verdadeiramente preparada exige mais do que uma coleção de boas intenções. Precisa de um centro de comando funcional com autoridade delegada para cenários de crise severa, capaz de coordenar e agir em tempo útil. Requer também um fundo europeu de resposta rápida, com financiamento autónomo e ativável fora dos constrangimentos orçamentais convencionais.

É igualmente urgente tornar efetiva a interoperabilidade dos sistemas nacionais de proteção civil, segurança e saúde, estabelecendo normas comuns e mecanismos de ativação cruzada. As cláusulas de solidariedade e assistência mútua não podem continuar como declarações simbólicas: têm de ganhar operacionalidade real e aplicabilidade concreta em cenários de crise. E os exercícios conjuntos devem incluir simulações realistas de decisão política e acionamento de mecanismos de resposta integrada.

Por fim, a criação de uma Unidade Estratégica Europeia para a Resiliência, com mandato transversal em domínios críticos como a cibersegurança, a proteção de infraestruturas críticas, a saúde pública, a gestão integrada dos fluxos migratórios e a luta contra a desinformação, poderia representar um salto qualitativo. Esta unidade deveria assentar numa abordagem holística da segurança, reconhecendo que os riscos atuais são interdependentes e que a resiliência europeia só será eficaz se articular dimensões externas e internas, civis e militares, tecnológicas e humanas. Deveria ainda ter capacidade analítica, técnica e de coordenação interinstitucional — com peso estratégico no desenho de políticas e na gestão operacional de crises.

Sem estas reformas, a Preparedness Union será apenas mais um marco discursivo num tempo que exige ação. 

A União Europeia dispõe da escala, do conhecimento e dos recursos. Falta-lhe ainda o impulso de comando — essa capacidade de decidir sob pressão, de unir vontades e de agir quando o tempo escasseia.

É preciso ir além da gestão simbólica de crises. Uma União verdadeiramente preparada deve estabelecer uma cadeia de comando europeia clara e acionável, com autoridade delegada em crises graves. Estas propostas implicam reformas legais, investimento político e coragem institucional. Mas sem elas, a Europa continuará a confundir preparação com burocracia, e coordenação com resposta.

A “normalidade” desapareceu. O mundo mudou. As ameaças não são episódicas, mas estruturais. No entanto, a resposta da União Europeia continua prisioneira de um modelo lento, atomizado e deliberativo, que já não serve o tempo da crise. 

Na hora zero, a Europa precisa de uma liderança que saiba decidir, mobilizar e agir com urgência. Porque sem comando, a preparação é apenas um plano à espera do fracasso.

Especialista em Segurança e Defesa

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