A Europa dos tecnocratas a América dos oligarcas
Quero hoje, neste Directo à Leitura, transcrever as palavras de Carlos Matos Gomes, de um texto que me fez chegar e que julgo oportuno citar: “O discurso do vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, na Conferência de Segurança realizada em Munique, na semana de 10 a 15 de Fevereiro é uma extraordinária lição de política. Independentemente do que cada um possa pensar de J.D. Vance, ou de Trump, ou dos EUA, ou da Rússia, o discurso do vice-presidente dos EUA apresenta os fundamentos da prática política dos Estados Unidos desde a sua fundação: o poder assenta na força dos fortes e é essa força que permite apresentar os poderosos como virtuosos. Maquiavel afirmou o mesmo. Os europeus praticaram estes princípios até à Segunda Guerra Mundial, que colocou um fim no colonialismo e na falácia da missão civilizadora do Ocidente. J. D. Vance foi a Munique afirmar o princípio da força como fundamento do poder, o princípio da unidade do poder e negar as bem-intencionadas teses da divisão tripartida dos poderes, executivo, legislativo e judicial de Montesquieu. (…) o poder nos Estados Unidos assenta nisto: na lei dos xerifes do Oeste: a lei sou eu e o meu revólver. Os poderes tradicionais e os não tradicionais devem estar submetidos ao detentor do poder executivo. J. D. Vance explicou que o êxito dos Estados Unidos e a vitória de Trump resultam do facto de o poder ser exercido por uma conjugação de tirania e oligarquia, na classificação de modos de governo estabelecido por Platão em República.”
Independentemente de podermos ou não concordar com as palavras do ex-comando Carlos Matos Gomes, o escritor que conhecemos pelo pseudónimo Carlos Vale Ferraz, certo é que, perante esta fotografia a sensação que se tem é que a Europa, ela mesma rampa de lançamento das oligarquias que dominaram o mundo desde o século XVI até 1945, de nada ou pouco vale no concerto das nações. Poderia transcrever aqui o resto do magnífico exercício de Ciência Política que é a análise de Carlos Matos Gomes a este problema complexo: o das oligarquias americanas, russa e a autocracia chinesa, e qual o papel secundaríssimo reservado à Europa no actual quadro das relações internacionais. Mas quero extrapolar das palavras de Matos Gomes para algo que, a reboque delas, julgo que faz também algum sentido: pensar a Europa e a sua óbvia degradação democrática à luz do que, depois de uma ou duas décadas de regimes tecno-fascistas (é o que penso que teremos de viver depois das eleições alemãs deste ano, de que não afasto a vitória da extrema-direita) terá de ser, necessariamente, o repensar das políticas europeias: das decisões económicas e financeiras, da obsessão do deficit à doutrina militarista que, por via do investimento de 5% do PIB na corrida armamentista (a Europa comprando material de guerra aos EUA, claro), se traduzirá no enfraquecimento do Estado Social e das políticas públicas: educação, saúde, justiça e habitação.
A questão que deverá colocar é, creio, mental. Ou cultural. É uma questão que já hoje se põe e que para pensadores como Jurgen Habermas (A Técnica como Ideologia) ou, mais recentemente, Byung-Chul Han, mereceram atenção. Qual o papel do Velho Continente no tempo dos oligarcas? Que visão pode a Europa ter quando, cercada por todos os lados, traída pelo Novo Continente, antes e agora com Trump, a Europa não é uma potência militar, nem económica, nem - e sobretudo - política? A insignificância política é, de resto, a questão a partir da qual podemos e devemos pensar, posto que, na cimeira recente, hoje nos altos cargos europeus, só temos tecno-burocratas e não homens e mulheres de Estado.
Estamos em face de uma Europa pejada de técnicos, mas não de políticos verdadeiramente realistas quanto a este dado: os EUA não convidarão, de agora em diante, os seus aliados da UE para os grandes certames das decisões e do poder. Que futuro, pois? Esvaída duas vezes por dois conflitos mundiais, responsável por ter arrastado os States para esses dois conflitos (mesmo se as Administrações americanas souberam muito bem fazer com que a Europa pagasse caro o facto de ser um continente de guerra sem-fim), a Europa perdeu-se nos corredores de uma burocracia nefanda. A imagem do macho dominante - a América de Trump, a Rússia de Putin, o comunismo da competição de Xi-Jiping - mais do que uma imagem é a verdade da História.
A Europa dos burocratas é constituída por políticos que jamais serão machos-alfa, antes as tais galinhas tontas no aviário europeu. Do chanceler Sholz a Macron, de Von der Leyen, de Kallas, a Mark Rutte, ao nosso Costa “o que vemos é um grupo de estarolas que não inspira confiança sequer para atravessar uma rua, mesmo durante o dia e com os semáforos a funcionar”, diz Carlos Matos Gomes.
O futuro da Europa coloca-se nestes termos: os de Klaus Mann em 1933: “Qual é a profundidade da simpatia das pessoas com as quais partilhamos convicções, princípios de civilidade, objectivos e aspirações?” Resposta: nenhuma profundidade. Que se leia o seu livrinho: Contra a Barbárie (Gradiva, 2017).
Professor, poeta e crítico literário
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico