A encruzilhada de Augusto Santos Silva

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Nas últimas 48 horas, o leitor foi já suficientemente massacrado pela Câmara Municipal de Lisboa e pela vergonhosa entrega de dados de ativistas às autoridades de Moscovo. Escuso-me a elencar os danos reputacionais que um país de economia largamente dependente do turismo, como o nosso, sofreu nesta semana à conta do caso. Também não creio ser necessário explicitar o desastre que é, para António Costa, abrir a sua presidência europeia com a morte de um ucraniano às mãos do Estado português e encerrar a mesma presidência com a exposição de dissidentes russos aos ouvidos de Vladimir Putin. O silêncio do primeiro-ministro foi meia-palavra que para bom entendedor bastou. Deixemos, por isso, a humilhação internacional e o tumulto autárquico para outras núpcias. É de política externa que este texto tratará e, em concreto, do seu titular na passada meia década.

Não tão popular quanto o ex-ministro das Finanças nem tão omnipresente quanto o chefe do executivo, Augusto Santos Silva não foi o rosto do breve superávite português, como foi Mário Centeno, nem o pai da primeira solução de governo à esquerda, como Costa é ainda. A sua influência no rumo do país nos últimos seis anos não merece, todavia, menosprezo. A desatenção mediática e a discrição parlamentar de que gozou contrastam, e muito, com o modo como alterou o posicionamento estratégico português no mundo.

Para o bem e para o mal, haverá um antes e um depois de Santos Silva no Palácio das Necessidades. O conluio entre a câmara da capital e o Kremlin não está isolado do mandato do atual chefe da diplomacia portuguesa. É preciso dizê-lo e explicá-lo. E é nessa explicação que o escândalo desta semana se torna não apenas um fracasso democrático, como também um fiasco no que à política externa diz respeito.

É uma questão de olhar um pouco para trás.

Assumidamente, Santos Silva aprofundou três relações com três potências distintas desde que tomou posse: a República Popular da China, recebendo e assinando 17 acordos com Xi Jinping; a Índia, visitando e elevando Modi apesar da sua deriva teocrata; e a Federação Russa. Em 2018, Portugal foi um dos nove Estados membros da União Europeia a não expulsar diplomatas russos aquando do envenenamento de Sergei Skripal no Reino Unido. Santos Silva subscreveria as conclusões da Comissão Europeia, que responsabilizavam Putin pelo ataque, mas tal não o impediria de receber o ministro dos Negócios Estrangeiros russo escassos meses depois.

Esse foi um dos momentos mais definidores daquilo a que poderemos chamar, com o exagero restrito a este texto, a doutrina Augusta. Santos Silva descreveu-a, numa das suas excelentes intervenções de encerramento em seminário diplomático. Para o MNE, a política externa portuguesa materializa-se em três vértices: as duas faces de Jano, como princípio; a construção de pontes, como meio; a preservação e a criação de influência, como fim. Nas suas palavras, o facto de Portugal se apresentar como capaz de ostentar dois rostos, estabelecendo laços entre antagonistas, traduz-se numa invejável posição de poder.

O problema da doutrina descrita é duplo. Por um lado, obriga a que o tradicional cinismo diplomático resvale, certas vezes, para uma aparência de dissimulação. (É revisitar as suas cómicas declarações desta quinta-feira, esperando que "as autoridades russas apaguem os dados" que receberam da Câmara de Lisboa.) Por outro, a apatia portuguesa perante o crescente desprezo da Rússia pela lei internacional (envenenamentos, detenções sem mandado, etc.) faz que o nosso suposto estatuto de interlocutor privilegiado se assemelhe, cada vez mais, à subserviência de um conivente ocasional. E isso, indisputavelmente, corresponde a um fracasso de política externa.

Se Putin não se coibiu de ordenar um atentado químico em solo europeu, há três anos, o que acontecerá aos ativistas que se manifestaram em Lisboa caso regressem a casa?

Colunista

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