A dúvida existencial do Ocidente
Joe Biden sabe, como Trump sabia, que a China é o desafio aos Estados Unidos da América que importa. Mas acredita, ao contrário de Trump, que o problema não é apenas económico e não se resolve sem aliados. Já a Europa, entre o pragmatismo sem grande fé nos valores ocidentais de Merkel, que está de saída, e as ambições globais de Macron, está baralhada quanto ao que quer, ao que pode e ao que deve ser.
Trump acreditava que tudo era uma questão de competição económica e que a forma de exercer poder, sobre inimigos, adversário e aliados, era sempre a mesma: pressão e confronto. Biden quer convencer os europeus, e os outros aliados, que a China é uma ameaça sistémica, um adversário conceptual e ideológico. E que a economia é instrumental neste confronto.
Joe Biden quer construir um argumento para a bipolarização global que vá além da competição económica. E tem razão. O que distingue a China do Ocidente não é o crescimento económico ou o capitalismo de estado. É a ideia de sociedade. É a ideologia. É disso que Biden quer convencer os europeus. Tem, porém, vários problemas. Para a economia americana, perder a China é grave porque é perder um importantíssimo mercado. Mas se com isso ganhar deixar de ter concorrência noutros lugares, pode valer pena. Terá de valer a pena. Para alguma Europa, a mais industrial ou ambiciosa, a questão parece colocar-se de outra maneira. Perder o mercado chinês sem ganhar nada em troca, nem economicamente nem em poder no palco global, parece apenas perder. O presidente dos Estados Unidos terá de convencer os líderes e os europeus do contrário.
Um outro problema do presidente dos Estado Unidos, que continua a acreditar numa coligação global de democracias, é que as democracias não chegam. E por duas razões: porque há demasiados regimes não democráticos que o Ocidente precisa que prefiram o lado de cá ao lado de lá (pode começar-se pela Arábia Saudita ou pela cada vez menos democrática Turquia e acabar nas Filipinas, por exemplo); e porque, como candidamente explicou Órban a Jaime Nogueira Pinto, aparentemente sem causar impressão, há regimes ocidentais que apreciam o "nada em troca" da China quando presta ajuda. Exatamente o que há uns anos alguns regimes autoritários africanos diziam.
Biden tem, ainda, de resolver como lidar com a Rússia. Não é possível aos americanos ignorar o seu efeito no mundo, mas também não é possível atuar em todos os palcos com a mesma intensidade ao mesmo tempo. Se conseguir que os russos não causem demasiados problemas aos EUA, o Kremlin poderá ser um problema na Europa e Ásia e, portanto, em primeiro lugar dos Europeus. É nisso que acredita o paper do Center for American Progress, um think tank próximo dos democratas, que sugere que é tempo de os Estados Unidos defenderem uma capacidade militar europeia própria. Nesta visão do mundo, os europeus terão de ser crescentemente responsáveis pela sua segurança, pelo menos na proximidade das suas fronteiras. Isso tem, porém, vários custos. Em euros, homens e não só.
Esta transformação implica que a Europa decida qual é que quer que seja o seu lugar no mundo, e o que está disposta a fazer por isso. Negociar uma relação comercial com os Estados Unidos mais equilibrada é, com certeza, uma das peças. Mas a questão de fundo é outra e é interna: acreditar que tem um interesse próprio, passível de ser comum. Isso não se resolve com votos por maioria na política externa, resolve-se com o regresso da ideia de Ocidente e dos seus valores.
Consultor em assuntos europeus