A ditadura do mercado
Atualmente, 800 milhões de pessoas vivem em situação de fome no mundo, ao mesmo tempo que entre 25% a 30% de alimentos são jogados fora. O homo sapiens criou uma civilização notável baseada na ciência, multiplicou a produtividade e a variedade de coisas que é capaz de fazer, mas não parecemos capazes de pará-la e reconfigurá-la, encaminhando-a para outro desfecho que não seja a sua destruição, anunciada pela crise ambiental que aqueles que mandam realmente no mundo insistem em negar.
Além do grande desastre natural em andamento, gastamos 2,5 milhões de dólares por minuto em despesas militares. Segundo dados da Amnistia Internacional, 70% das vendas de armas estão nas mãos dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Aliás, e observando o que não faz a Organização das Nações Unidas, é obrigatório concluir que ela está a ser destruída pelos seus próprios membros, a começar pelas potências que integram o referido Conselho de Segurança.
O historiador israelita Yuval Harari não tem dúvidas: a humanidade não tem tempo para reparar os desastres que provocou ao planeta, pelo que - diz ele - estamos a caminhar para um holocausto ecológico.
Como chegamos até aqui?
O antigo presidente uruguaio José Pepe Mujica, que governou entre 2010 e 2015, atribui o facto à sobreposição dos interesses mercantis, ou seja, da sociedade de mercado à política, cuja função é manter a comunidade, mas que perdeu a capacidade de coagir o sistema económico a manter a ideia de cooperação que, lembra ele, está na base da civilização humana. Chamo a isso, por conseguinte, a ditadura do mercado.
Numa recente e notável entrevista ao espanhol El País, o ex-presidente do Uruguai recorda que o homo sapiens era fisicamente inferior ao homem de Neandertal, mas que este último sucumbiu porque não tinha o senso de cooperação do primeiro. A sociedade humana foi construída com base nesse sentido de cooperação, a qual, até agora, sempre foi promovida e mantida pela política, à qual tem cabido dirimir os naturais conflitos entre os indivíduos. Atualmente, porém, a política mostra-se incapaz de mexer com os profundos interesses em jogo.
Segundo acrescentou, o atual processo de globalização está a ser realizado exclusivamente pelos interesses do mercado, ao contrário de outros processos idênticos ocorridos no passado, tais como nos impérios romano e chinês. Nesses processos de globalização, havia uma direção política, enquanto, nos nossos dias, a política limita-se a ir atrás. Entre vários exemplos, Mujica apontou o facto de certas empresas transnacionais serem mais fortes do que muitos estados.
O que se passou com o processo mundial de vacinação contra a covid-19 foi, para o político sul-americano, uma demonstração dessa ditadura do mercado global em que a humanidade vive presentemente. Conforme afirmou ele, ficou claro que, hoje, a propriedade do conhecimento vale mais do que as próprias necessidades humanas. "Os sistemas de vacina poderiam ter sido ampliados de forma muito mais rápida e isso acabou custando milhões de vidas", lamentou.
Mujica não defende o fim do capitalismo. Acreditando que "onde há uma grande empresa é porque a cooperação humana funciona", sugere taxativamente que "o melhor do capitalismo deve ser mantido", propondo, nesse sentido, o apoio a formas de autogestão e cogestão.
Para isso, urge colocar a política novamente em primeiro lugar e não os meros interesses mercantis. Uma nota, aqui, para observar que o discurso antipolítica, uma das principais retóricas do neoliberalismo, não é certamente inocente, visando manter os interesses privados à frente dos interesses de toda a comunidade.
Mujica acredita que apenas os jovens podem recuperar a importância e o papel da política, assumindo duas causas fundamentais: o ambiente e a paz. Resta saber, como ele pergunta, se o género humano estará a chegar ao limite da sua capacidade de autodirigir-se, sucumbindo aos efeitos da ditadura do mercado.
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21