Hoje o cavaleiro João Moura é homenageado no Campo Pequeno, com uma corrida de touros a condizer. É descrito pelos seus pares como um artista que, enquanto cidadão, cometeu um erro pelo qual não deve ser condenado em praça pública. E, assim, a comunidade nacional e internacional faz-lhe as devidas vénias..Seguindo esta linha de raciocínio, quem seja acusado de abuso sexual de crianças deve receber o Selo Protetor da Infância, que visa garantir os direitos da criança em todos os contextos de vida. E quem é acusado de causar incêndios ou explosões deve receber a Medalha de Mérito de Proteção e Socorro..Sarcasmo à parte, falamos de homenagear alguém que responde por um crime de maus-tratos a animais. Ou já esquecemos os 18 galgos resgatados em estado de subnutrição grave e com ferimentos diversos? Sendo que a referida homenagem é precisamente... por ser toureiro. Por amar os animais e a natureza. Isto é arte ou incoerência e hipocrisia? Ou quem ama touros pode torturar cães?.Falemos agora das crianças. De acordo com a legislação em vigor, as touradas são espetáculos para maiores de 12 anos de idade, sendo interdita a entrada a menores de 3 anos. Mas tem existido uma interpretação abrangente deste disposto em que se tem contornado a idade mínima legal, fazendo a leitura de que a responsabilização é dos pais ou de qualquer outro adulto. Ou seja, com a companhia de um adulto, crianças entre os 3 e 12 anos de idade podem assistir. Significa que a mera presença do adulto inibe todo e qualquer impacto negativo na criança. Então, porque não ver filmes pornográficos ou de terror com os nossos filhos?.O Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas foi muito claro no seu mais recente relatório 1 sobre a avaliação do cumprimento de Portugal da Convenção sobre os Direitos da Criança. De forma inequívoca, as touradas são consideradas violência contra crianças, a par de castigos corporais, abuso e exploração sexual e outras práticas prejudiciais. Neste contexto, a ONU recomenda a Portugal que estabeleça a idade mínima em 18 anos, sem exceção, para participação e assistência em touradas ou largadas, incluindo escolas de toureio, atendendo ao impacto negativo que estas atividades têm na saúde, na segurança e no bem-estar das crianças. Portugal não pode continuar a desperdiçar a oportunidade de reparar uma clara violação dos direitos da criança..De salientar ainda o relatório 2 da Ordem dos Psicólogos Portugueses sobre o impacto psicológico da exposição das crianças aos eventos tauromáquicos, que conclui que "a exposição à violência (ou a atos interpretáveis como violentos) não é benéfica para as crianças ou para o seu desenvolvimento saudável, podendo inclusivamente potenciar o aparecimento de problemas de saúde psicológica"..A homenagem de hoje deixa-me dúvidas muito preocupantes. Vivemos numa sociedade onde a violência é normal, banal, legítima e aceitável? Ser cruel tem recompensas? Ser violento é positivo?.E é isto que ensinamos às nossas crianças..Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal