A desigualdade infeta
É chocante a revelação de que as maiores fortunas do mundo estão a crescer à razão de 800 milhões de dólares por dia. E choca também a notícia de que o maior crescimento relativo no comércio automóvel português está na venda de viaturas de luxo e de alta cilindrada. Isto, enquanto a gelada Filomena nos vem recordar que Portugal é um dos países onde mais se morre de frio e que uma em cada cinco das nossas famílias não tem recursos para sustentar o aquecimento das suas casas.
Por todo o mundo, o vírus que alastra há um ano golpeia de forma severa milhões de pessoas. E o espelho da pandemia devolve-nos, com maior nitidez, a imagem de desigualdade insuportável que define a nossa ordem económica e social, paira sobre o nosso modo de vida e afeta sua sustentabilidade. A crise sanitária é, agora também, profundamente económica, a maior das nossas vidas.
Hoje, mais do que ontem, há mais famílias flageladas, muitos mortos mais a lamentar, empresas a falir, mais trabalhadores desempregados. O vírus e a doença não discriminam, podem tocar a todos, mas são os mais pobres que menos lhes resistem. A pandemia expõe a fragilidade da condição humana e exige resposta e mudança de comportamentos. E não adianta esgrimir sobre por onde começar, porque é falso o dilema entre salvar vidas ou salvar a economia. É crucial cuidar de ambas.
Na quinta-feira voltamos a confinar. Suspender a normalidade e a economia por decreto tem sido fácil, abri-la nem tanto. A vacina já chegou, mas vai tardar generalizá-la. E pelo caminho que isto leva, é hoje bem claro que os desgraçados efeitos económicos e sociais da pandemia não acabam com a injeção da última dose, vão sobreviver à crise sanitária. A desilusão, o medo e o ressentimento são más companhias. E, no plano político, mais a mais em períodos eleitorais como o que vivemos, tendem à radicalização, minam a confiança coletiva e o papel das instituições.
É nestes momentos que se agiganta o papel que esperamos do Estado - do nosso e dos outros, em especial aqueles que há mais de 60 anos apostam na construção europeia. O compromisso com a construção do Estado de bem-estar e coesão social, no século passado, gerou um ciclo virtuoso de prosperidade e adesão que pode inspirar a retoma do caminho, agora adaptado aos nossos tempos. Ignorá-lo é semear o terreno para calamidades políticas mais devastadoras do que o Brexit, piores do que Trump e Bolsonaro. E, desgraçadamente, já germinam por aí sementes caseiras dessa praga.
Ora, a capacidade de reverter tendências negativas está sobretudo nas lideranças, a quem confiamos a tarefa de criar condições de progresso social. É certo que ao Governo de turno, no exercício da autoridade delegada, cabe convocar o maior número de atores disponíveis para fazer esse caminho e devolver resultados. Mas a mudança de comportamentos e a construção de uma sociedade sustentável, mais próspera e inclusiva depende, também, de cada um de nós.
Proverbial, diz a minha sogra que "a morte é certa, a ordem é que não". Já Octávio Paz, poeta, acrescentaria que não convém desperdiçarmos a oportunidade de merecer o que sonhamos.
Jornalista