A democracia é a primeira condição
Vivemos um tempo em que os partidos social democratas começaram a ter vergonha de se dizer socialistas, porque “a palavra S” evoca nacionalizações, mais impostos para os ricos e estratégia económica reguladora do Estado, o que vai contra a “doxa” económica neo-liberal vigente, que visa remeter o Estado às estritas funções de soberania, beneficiar fiscalmente os mais ricos e anular qualquer influência estatal nos domínios económico e social. Em contrapartida, a extrema-direita perdeu qualquer resquício de vergonha e advoga o racismo, a xenofobia, o conservadorismo moral e o autoritarismo político, através da abolição da Constituição que nos rege. Qual seria a reação da nossa imprensa, dominada pelos ideais da economia liberal, se, algum iluminado de extrema-esquerda viesse propor uma Quarta República?
As universidades financiadas por empréstimos bancários aos estudantes, que passarão os primeiros tempos da sua vida profissional a trabalhar para os bancos, a saúde entregue aos privados, com seguros exorbitantes a cobrir dificilmente os elevados custos dos tratamentos mais inovadores, a educação para a desigualdade e não para a cidadania, esta é a face oculta do paraíso liberal, tão hipócrita e injusto como foi o paraíso comunista.
Face a esta hegemonia cultural da direita, no que toca às áreas económica e social, o socialismo democrático retrai-se, abriga-se num vago “socialismo liberal”, que não seria mais do que um liberalismo de rosto humano, uma economia desregulada com algum assistencialismo público associado.
Quem me lê dirá que estou a forçar as tintas, a caricaturar e a desvirtuar os objetivos liberais. Eu penso do neo-liberalismo que ele constitui uma ideologia extremista a partir dos princípios do liberalismo clássico, como o marxismo-leninismo (que eu, como social democrata que sou, distingo do marxismo), e que é expressão dos interesses de um capital financeiro que veio exercer a sua dominação nociva sobre a economia real. Houve antes um liberalismo social, aquele que integrou no pós guerra a economia social de mercado e que durou até ao dia em que Margaret Thatcher descobriu que não havia sociedade, só mercado.
Esse liberalismo extremista, próximo do anarco-capitalismo, encontra-se por toda a extrema-direita mundial, salvo quando o líder da extrema-direita (por exemplo Trump) descobre que esse neo-liberalismo vai limitar a sua autoridade absoluta e prolongar a abertura ao mundo que a globalização trouxe, impedindo políticas nacionalistas extremas: volta então (sempre Trump) ao conservadorismo autoritário tradicional das extremas-direitas, rompendo com Musk, o tecno-feudalista que desfaz os Estados com um serrote .
Não durou muito o idílio entre os multimilionários das tecnologias da informação e o presidente Trump. Mas olhemos para a Europa: a extrema-direita cresce por todos os Estados e interrogamo-nos até quando a direita que se reclama da Democracia irá fazer barreira a essa torrente e manter o seu lema “não é não”. A esquerda, obviamente, deve assumir como sua missão o combate, sem reservas nem meias palavras, àqueles que querem o suicídio do regime democrático. O que pode implicar da sua parte alianças e compromissos com a direita democrática, mas nunca o esquecimento da sua identidade e da sua diferença.
Diplomata e escritor