A democracia vive entre a realidade complexa e a mentira simplista

Publicado a

Vivemos num tempo de paradoxos. Nunca estivemos tão informados e, ao mesmo tempo, tão expostos à mentira. Nunca tivemos tantas ferramentas para compreender a realidade e, simultaneamente, tantos mecanismos para distorcê-la. Este paradoxo é um dos maiores desafios das democracias contemporâneas: a convivência entre a abundância de dados e a fragilidade da verdade, entre a complexidade dos problemas e a tentação das soluções simplistas.

As redes sociais, os motores de busca, os algoritmos e a proliferação de fontes noticiosas criaram um ambiente em que o acesso à informação parece ilimitado. Mas esse ambiente também facilita a disseminação de desinformação e acentua divisões e muitos canais digitais reforçam lógicas de “nós” contra “eles”, que corroem o espaço comum da cidadania democrática.

Neste contexto, discursos políticos que oferecem soluções fáceis para problemas complexos ganham terreno. Prometem segurança com exclusão, prosperidade com protecionismo, ordem com autoritarismo. São narrativas sedutoras, mas perigosas, porque recusam a complexidade do real e desvalorizam a pluralidade de perspetivas. A polarização intensifica-se, a confiança nas instituições declina e o contrato democrático torna-se mais frágil.

Importa, por isso, recordar o que é, verdadeiramente, uma democracia. É um sistema político que combina, de forma indissociável, a proteção dos direitos, liberdades e garantias de todas as pessoas, a defesa do Estado de Direito, a realização de eleições livres, justas e periódicas, e a separação de poderes, sem se preocupar com a cor da pele, a religião, a origem, os hábitos ou as tradições de cada um. Dentro dos limites que a Constituição estabelece, a democracia é, por definição, inclusiva.

Mas não basta que a democracia seja justa nos princípios. Importa também que seja eficaz na prática. Ao abraçar a complexidade, a democracia deve ser capaz de encontrar soluções reais para as aflições das pessoas que se preocupam com a insegurança económica, o acesso à habitação, a qualidade da saúde, a solidão social ou a incerteza quanto ao futuro. Só assim se renova a nossa confiança coletiva no valor do regime democrático.

Democracia não é sinónimo de unanimidade, nem de perfeição. É um processo contínuo de aprendizagem coletiva, onde os erros podem ser corrigidos e as diferenças respeitadas. Num mundo em transformação acelerada marcado pelas alterações climáticas, pela revolução digital, pelas crises geopolíticas e pelas desigualdades persistentes, a democracia é o único sistema que nos permite enfrentar a incerteza com liberdade e responsabilidade, através de instituições robustas e adaptáveis, políticas públicas baseadas em factos e participação de uma cidadania ativa, crítica e informada.

Mas para que isso seja possível, temos de promover a literacia mediática, valorizar a educação cívica, reforçar a independência da comunicação social, criar pontes entre a ciência e as políticas públicas e combater ativamente a manipulação da verdade. Em vez de fugir da complexidade, temos de abraçá-la como condição da liberdade e como caminho para soluções que sirvam as pessoas.

A democracia só sobreviverá se for capaz de responder aos desafios do século XXI sem abdicar dos seus princípios. E isso começa por recusar o engano confortável em nome da verdade difícil. Porque num mundo de realidades complexas, a resposta mais perigosa é a mentira simplista.

Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL

Diário de Notícias
www.dn.pt