A Cultura como enigma…
Dia por dia, passa hoje o centenário do nascimento de Eduardo Lourenço. O tempo passou muito depressa. Em vários anos recentes reunimo-nos, alguns amigos próximos, para assinalar a data num jantar sem pretensiosismos, apenas em conversa aberta. Os formalismos não eram do agrado de Eduardo. A sua curiosidade estava sempre desperta, e tudo começava invariavelmente pelos temas corriqueiros da atualidade. E, ao escrever esta prosa, imaginei, por momentos que o meu amigo de tantas viagens regressara ao meu gabinete, vindo da sua tebaida, na vizinhança do gabinete onde trabalho.
Durante vários anos esse hábito tornou-se comum. Eduardo entrava, olhava os meus livros com injustificada inveja e tirava um de um modo aleatório. Invariavelmente, eu recordava-lhe que tinha a mesma obra no seu gabinete. Mas ele tinha um prazer especial em usufruir de um livro alheio, que lhe parecia sempre mais apetecível e reluzente do que o seu próprio. Folheava o livro, lia uma passagem, e descobria sempre uma novidade, um inesperado motivo de interesse, que começava a comentar. Lembro, ao acaso, a Fénix Renascida dos clássicos da Gulbenkian. Com verdadeiro prazer leu: "Fermoso Tejo meu, quão diferente / Te vejo a ti, e tu a mim triste. / Claro te vi eu já, tu a mim contente". E depressa descobriu um estranho mistério, já que, apesar da glosa referir Francisco Rodrigues Lobo, o certo é que se tratava de puro Camões, ali relido, um século volvido... E esse doce engano seria motivo de longa charla sobre as glosas poéticas barrocas e respetivos metáforas e paradoxos. Afinal, não há cultura sem enigma e por mais difíceis que sejam as interrogações da esfinge, a verdade é que o seu jogo leva sempre a estranhas composições, que permitem irmo-nos encontrando. Aí estava a essência do ensaio.
Fecho os olhos e sonho de novo que Eduardo me vem buscar para, de braço dado, irmos ver o diálogo fantasmático entre Rui Chafes e Alberto Giacometti. E paramos no átrio da Gulbenkian diante da peça Durante o Sono, obra perturbadora que representa, à maneira barroca, como na Fénix Renascida, o princípio da ilusão, numa bola de ferro suspensa em imaginosa imponderabilidade. "A morte é o que nos mantém acordados". E assim na lembrança onírica, Eduardo Lourenço evoca a incontida força anímica do homem que caminha de Alberto Giacometti, que o fascina. E Helena de Freitas compreendeu bem o que aproximava Giacometti de Chafes e pô-los em diálogo num encontro e numa presença partilhada - ambos procuram atingir a imaterialidade e a transcendência, na representação do invisível. Desde a desmaterialização exasperada ao desafio dos limites da suspensão. E vemo-nos chegados aos Olhos que não dormem, o surpreendente desafio que a Fundação Giacometti fez a Rui Chafes, a partir do ensaio para Le Nez, do final dos anos quarenta, "aproximando as coisas que nunca foram aproximadas e não pareciam predispostas a sê-lo". Os mundos da sensibilidade e das ideias encontram-se, sendo Rui Chafes um escultor que pensa. Novalis diria: "Aquilo de que a História se apropria não pode ser efémero".
Não foi aleatório este encontro no mundo dos sonhos no dia do centenário de Eduardo Lourenço, porque ele que disse, em Espelho Imaginário, Pintura, Anti-pintura e Não-Pintura: "O peso do mundo é feito da nossa impotência, mas não conhecemos bem nem um nem a outra sem o combate que os associa. Sob aparências frágeis o combate de Vieira da Silva é um combate severo. Passar da impotência formal fundamente sentida à suprema liberdade de se dar o mundo por alusão, transfigurar o espaço como Destino inflexível em mar múltiplo e ilimitado, ao mesmo tempo espaço real e de sonho, elemento indestrutível e familiar da viagem arquétipa, não é um privilégio banal. É uma obra de Poeta capaz de tecer com o tempo a frágil eternidade que ele nos consente. Essa mesma que a música pictoral de Vieira da Silva nos inventa, servindo-nos de eco e de movente espelho".
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian