Desde há 20 anos, o Algarve tornou-se símbolo do património cultural, mercê da assinatura em outubro de 2005 da Convenção do Conselho da Europa sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea, envolvendo não apenas os monumentos, mas também as tradições, a natureza, a paisagem e a criação artística. Este documento envolve uma significativa responsabilidade, considerando a surpreendente riqueza não apenas da maravilhosa costa marítima, mas também do barrocal e da serra com um potencial inesgotável.Recordo uma longa conversa que tive com o meu saudoso amigo José Maria Ballester sobre as virtualidades desta Convenção. A ideia de Helena Vaz da Silva está na sua origem, ao apresentar a grande originalidade de considerar a consciência europeia através da mobilização das pessoas e redes culturais europeias, enquanto roteiros e projetos comuns, que permitissem abrir horizontes de paz e de entreajuda, pelo melhor conhecimento do património cultural próximo e distante, com o reconhecimento de que a melhor identidade comunitária é a que não se isola, mas a que se acrescenta. O monumento ou o museu da minha região ganha mais sentido se partilhar o seu significado com outros exemplos de uma realidade local ou nacional. A dimensão cultural europeia aberta ao mundo reforça a ideia de cidadania comum, partindo das diferenças e pondo a tónica na autonomia individual e na solidariedade, na tradição e na modernidade.A originalidade de adotar o conceito de “património comum da Europa” tem de ser vista como um elemento dinamizador de uma cidadania ativa e aberta. Somos cidadãos e une-nos um sentimento de pertença comum e elos que se reportam a uma História viva, simbolizada e representada por uma herança, pelo património material e imaterial, e pela capacidade de tornar presente essa evocação, através da vitalidade da criação contemporânea. O “valor” surge, assim, no “horizonte da experiência histórica”, fora de qualquer conceção desenraizada.Património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e no ponto de encontro das várias complementaridades. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, a Convenção de Faro visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. Quantas vezes um mesmo bem patrimonial pode estar ligado a tradições diferentes. Um templo pode ter na sua existência referências diversas - pode ter sido sinagoga, igreja cristã ou mesquita. As mudanças fizeram-se violentamente, e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Caberá à própria sociedade encontrar o denominador comum, que permita evitar ser aquele monumento fonte de conflito.Nesta perspetiva, o património cultural fica no ponto de convergência entre um passado violento de guerras civis e a procura de um consenso de valores e ideais defendido pelo Conselho da Europa.Segundo a Convenção de Faro: “O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução, incluindo todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo.”Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian