A construção de um Portugal global

O que nos podem inspirar 900 anos de história na consolidação de uma democracia madura.
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O atual retângulo continental que designamos como Portugal foi, ao longo de milénios, um território de cruzamento, circulação e fixação, mais ou menos longa, de povos e etnias oriundos de “desvairadas partes”. Foi, tem sido e continua hoje a ser um espaço de cruzamento de mundos e de homens e mulheres de diversas proveniências.

As origens

Na primigénia projeção de comunidades humanas pelo planeta Terra, aqui se fixaram as primeiras comunidades neandertais dos períodos pré-históricos. Povos antigos, com nomes que encontramos nas crónicas e nas primeiras histórias de Portugal, deixaram marcas de humanização neste território, como Galos ou Galaicos, Turdetanos, Celtiberos, Cónios e os mais conhecidos Lusitanos. Por aqui passaram Fenícios e Gregos. Roma estendeu até aqui o seu império, que estruturou este espaço durante meio milénio sob a pax romana e a língua latina. Este território era visto pelos geógrafos clássicos como o finis terrae, a parte mais ocidental do mundo conhecido, imaginado e cantado pelos poetas como um local paradisíaco atapetado de relva, em que se situava o jardim das Hespérides, com as suas maçãs de ouro.

Depois dos impérios clássicos, passou a ser cobiçado pelos povos nórdicos, chamados Bárbaros pelos Romanos, que estilhaçaram o seu império: Vândalos, Alanos, Suevos, Viquingues, Godos... Por aqui passaram, pilharam e raptaram. Não poucos se fixaram e organizaram comunidades e até reinos, partilharam a sua cultura e receberam uma religião nova, que deu cerzidura para a nova ordem que emergia do caos que a sucessão de invasões e apropriações tinha instalado: o Cristianismo.

A partir de 711, nova vaga de povos – agora do sul do Mediterrâneo, do norte de África, e sob um novo estandarte religioso – entra e estabelece-se neste território durante meio milénio: os povos de fé muçulmana. Árabes e Berberes impõem uma nova ordem social e deixam traços marcantes e inovadores no nosso património material e imaterial.

O Portugal atual formou-se por um processo de libertação da ordem estabelecida dos poderes islâmicos para estabelecer a nova ordem: a da pax christiana. Há 900 anos, este processo começou a ser liderado pelo que podíamos chamar, em linguagem de hoje, uma “família de um pai emigrante” francês, vindo de Borgonha. Henrique conseguiu a nobilitação a que aspirava, ao participar no processo de reconquista de territórios aos mouros, ao serviço do Rei Afonso VI de Leão e Castela, assumindo a titularidade do condado portucalense. O seu filho Afonso Henriques acabou por potenciar e liderar seminais vontades de autonomia entre a nobreza e o povo destes territórios entre Douro e Minho, para intensificar o processo de expansão e gizar um novo país independente, com o empenho das forças locais, mas contando, ao longo do seu reinado, com ajudas externas, nomeadamente de Ingleses.

Mas este território em que se desenhava um reino e uma nação, que consolidou as suas fronteiras em cerca de século e meio desde a aclamação do primeiro rei, na Batalha de Ourique, continuará a ser um espaço de cruzamento de povos, através de entradas e saídas de gentes diversas. Serão, desde então, muito significativos os movimentos de saída, que constituem o que nós designamos as sete diásporas portuguesas dos 900 anos de história de existência do projeto-Portugal enquanto país afirmado como tal.

As diásporas, da primeira à sétima

A primeira diáspora foi, desde logo, a diáspora moura, ou seja, a que decorre da expulsão dos poderes e das populações islâmicas na sequência da tomada de posse destes territórios pelos poderes cristãos. Foram empurrados para o sul de Espanha e para o outro lado da costa do Mediterrâneo, de onde vieram, levando muito do que aqui geraram, durante séculos de permanência, em termos de cultura, linguajares, tradições e memórias.

A segunda diáspora iniciou-se logo na Idade Média e perdurou ao longo de séculos, até hoje. Foi a da peregrinatio académica, a prática de enviar bolseiros/estudantes, normalmente financiados pela Corte de Portugal ou pela Igreja, para as universidades europeias (Bolonha, Paris, Oxford, Salamanca, Alcalá de Henares, Leiden...) para qualificar e preencher quadros do país, que exigem preparação académica e cultural. Esta diáspora – que teve momentos com intensidade diversa e que apresentou características diferentes conforme os contextos epocais, em particular no século XVIII, com a diáspora dos estrangeirados, que não só de académicos e cientistas – foi fundamental para trazer ideias novas a Portugal, bem como para promover reformas e atualizações importantes.

A terceira diáspora é a dos agentes do que denominamos o processo de estabelecimento de Portugal no mundo, tradicionalmente definido como o da edificação do império, na sequência das viagens marítimas intercontinentais. Foram os navegadores, os comerciantes, os oficiais do Estado, os povoadores e os colonos. Estes levaram muito da cultura e das práticas vigentes em Portugal e adaptaram-nas aos novos territórios onde atuaram, gerando metamorfoses criativas em interação com as culturas locais.

Associada a esta terceira diáspora, em ligação estreita com a mesma, temos a quarta diáspora: a dos missionários, enviados ao ritmo das viagens de exploração dos oceanos, de novas geografias e gentes. Foram os protagonistas do projeto de planetarização do Cristianismo. Não só trabalharam na evangelização de povos de todos os continentes, mas também, em nome desse ideal, contribuíram para criar aquilo que chamamos uma primeira base global de dados de conhecimento do mundo. Elaboraram as primeiras gramáticas e os primeiros dicionários de línguas desconhecidas dos Europeus, escreveram histórias de diversos países do mundo, cartografaram territórios sem mapas, produziram tratados científicos da fauna e da flora autóctones...

A quinta diáspora é mais uma diáspora dramática: a judaica. A expulsão dos Judeus pelo Rei D. Manuel I, no dealbar do século XVI, e as sucessivas perseguições movidas pelo Santo Ofício e por sectores inquisitoriais dispersaram importantes comunidades de descendentes de Hebreus que viviam há séculos em Portugal. Como bem denunciou, no século XVII, o Padre António Vieira, que defendeu o seu regresso, Portugal desperdiçou perdulariamente uma comunidade empreendedora e geradora de riqueza, que passou a assessorar a ascensão de grandes impérios, como o holandês e o otomano, onde tinha encontrado acolhimento.

A sexta diáspora é talvez a mais esquecida: a dos exilados políticos. Sabemos que os ciclos de queda e de ascensão de regimes, desde o século XIX, foram geradores de movimentos de saída, nomeadamente de exilados políticos, militares e intelectuais, que eram afetos ao regime revogado. Tal aconteceu em ciclos sucessivos, desde a Revolução Liberal de 1820, passando pela ascensão do miguelismo neoabsolutista, pela reimplantação plena do regime liberal em 1833/34, com novo pico na implantação da República em 1910, acentuando-se com o golpe militar de 1926 e a consolidação do Estado Novo, durante mais de quatro décadas. Finalmente, a revolução abrilina gerou um último movimento de exilados políticos, que tiveram como principal destino o Brasil.

Por fim, a mais conhecida, a sétima diáspora: a da emigração da época contemporânea, composta pelas vagas de portugueses que, desde o século XIX, procuram uma vida melhor em outros países, com oportunidades mais favoráveis de emprego e de salário. Estes contingentes de portugueses levaram com eles a nossa cultura, a nossa língua, os nossos costumes e crenças, que disseminaram e recriaram em comunidades que organizaram em diversos países de acolhimento, com destaque para o Brasil, a Venezuela, os EUA, o Canadá, a África do Sul, a Austrália, a França, a Inglaterra e a Alemanha. Hoje observamos cultos e tradições globalizados, como as Festas do Espírito Santo e a devoção a Nossa Senhora de Fátima, em grande medida graças a esta diáspora.

O Portugal Global

Para além dos que daqui saíram nestes 900 anos da nossa história, cumpre lembrar os que aqui entraram para trabalhar na “construção de Portugal”. Desde logo, os contingentes de escravos vindos de África e de outras paragens, que trouxeram a força de trabalho, mas também práticas culturais e sociais que deixaram marcas na herança cultural portuguesa. Também não podemos esquecer, na celebração dos 50 anos do 25 de Abril, a vaga imensa de 600 mil retornados do império encerrado, vindos das antigas províncias ultramarinas africanas, da Índia, de Timor e de Macau, injetando seiva nova e dinamismos novos e criativos na sociedade portuguesa.

Nestas idas e vindas, assistimos, por fim, nas últimas décadas, à entrada de um contingente significativo de pessoas, de vários continentes, com o estatuto de migrantes e de refugiados, da fome e da guerra. Esta nova vaga está a reconfigurar o tecido social e empresarial, sendo possível identificar diversas empresas que contam com mais trabalhadores estrangeiros do que com cidadãos nacionais.

São estas camadas de gentes tão diversas que construíram o Portugal Global, que precisa de ser tido em conta no conhecimento crítico dos 900 anos deste país do mundo que é feito de muitos mundos. Portugal tem uma história tão rica e plural que nos pode inspirar na construção de uma democracia madura e integradora da diferença.

Vice-Presidente da Comissão Executiva de Portugal 900 Anos
Diretor Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta

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