A China como tema central? E o resto?
O Presidente Lula da Silva foi ao longo da semana o assunto de política internacional que mais atenção mereceu na nossa comunicação social. Eu mesmo fui abordado um bom par de vezes, com pedidos para comentar o que o dirigente brasileiro dissera sobre a invasão da Ucrânia, durante a sua viagem à China. Não creio, por isso, que seja oportuno voltar ao assunto agora. Ou sublinhar uma vez mais os erros diplomáticos, a indiferença pela lei internacional e a falta de pragmatismo de Lula ao dizer o que disse. Também não vejo a necessidade de repetir que a minha análise não é uma questão de direita ou de esquerda. É simplesmente o reconhecimento objetivo que Lula meteu os pés pelas mãos.
A única observação que gostaria de sublinhar diz respeito ao acordo de comércio livre entre a União Europeia e os países do Mercosul, e à sua ratificação no Parlamento Europeu e nos Parlamentos de cada um dos Estados membros. Seria importante que a posição confusa, para não dizer hostil, de Lula não se transformasse num obstáculo suscetível de a impedir a breve trecho. Quando o Chanceler Scholz visitou o Brasil em janeiro passado, uma tal ratificação foi considerada urgente. O documento está pronto desde junho de 2019, mas o processo ficou parado ao nível europeu, por várias razões, sobretudo por causa das opções políticas de Jair Bolsonaro. Scholz disse que tudo faria para ver esse percurso legal completado antes do fim do corrente semestre. Era uma intenção ambiciosa, nada fácil de conseguir, que se tornou agora particularmente difícil, ao nível quer do Parlamento Europeu quer dos países do leste da Europa, onde muitos passaram a ver Lula como um peão no xadrez de Vladimir Putin e um vassalo comercial de Xi Jinping.
O Brasil e os outros países do Mercosul - Argentina, Paraguai e Uruguai - teriam muito a ganhar com a entrada em vigor de um quadro de comércio livre com a Europa. A UE é o maior investidor estrangeiro na região, mesmo tendo em conta o rápido crescimento das trocas comerciais entre o Brasil e a China.
A visita de Sergei Lavrov também não ajudou. Ao ir apenas a Cuba, à Nicarágua e à Venezuela, para além do Brasil, Lavrov como que arrastou o Brasil para o círculo das ditaduras latino-americanas, um clube a que o país não pertence. Não há nenhuma comparação possível entre a democracia brasileira e esses outros regimes. A deslocação do ministro mostrou ainda que o apoio com que Moscovo pode contar na região nem chega aos dedos de uma mão. Para quem fala na construção de um mundo multipolar, a coisa soa a pouco.
Na Europa, a China e o prosseguimento da agressão russa contra a Ucrânia foram, esses sim, os temas da semana. Incluindo a visita surpresa de Jens Stoltenberg a Kyiv. Ofuscaram mesmo a nova situação em Cartum, no Sudão, onde a confrontação entre o exército nacional e as antigas milícias originárias da parte ocidental do país - os Janjawid ou homens a cavalo, que é esse o significado da palavra - já provocou centenas de mortos e feridos e uma crise muito séria, que, para além do impacto doméstico, pode desestabilizar o Chade, como aconteceu na primeira década deste século. Tive na altura responsabilidades políticas na região, num vaivém entre os diferentes grupos rebeldes e as forças armadas dos países em causa. Estou, por isso, consciente das múltiplas divisões étnicas existentes, do potencial de violência que a história, a pobreza e as transformações climáticas foram criando, e valorizo a atenção dada pelo DN a esta nova crise, nomeadamente pelos textos de Raúl Braga Pires e de Leonídio Paulo Ferreira. Mas no resto da UE, o conflito não mereceu muitas linhas. Ora, a instabilidade no Sudão e no Chade faria derrocar dois dos três pilares - o terceiro é o Níger - que têm impedido o alastramento da insegurança a outras zonas do Sahel, no coração de África.
A política europeia em relação à China foi abordada no PE por Ursula von der Leyen. É uma questão complexa, tendo presente tanto que as trocas comerciais entre a UE e a China chegaram agora, em média, aos 2,3 mil milhões de euros diários, segundo foi revelado pela Presidente da Comissão Europeia, como ainda outros fatores: a China está em concorrência económica com a Europa, controla o processamento das terras raras que são necessárias para o fabrico das baterias elétricas, é um apoio fundamental do regime russo, tem aumentado a sua postura agressiva contra Taiwan e está numa rota de confrontação com o principal aliado dos europeus, os EUA. A intenção desta iniciativa de von der Leyen e do PE era clara: mostrar que as recentes declarações de Emmanuel Macron sobre Taiwan não representam a política comum europeia e fazer chegar a Beijing uma mensagem de pragmatismo: comércio, sim, mas dentro de um quadro político respeitador de certos princípios. Nada fácil.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU