A Carta das Nações Unidas e a urgência de voltar ao futuro

Publicado a

A 26 deste mês a Carta das Nações Unidas perfaz a bonita idade de 80 anos de existência. Foi esse o dia da sua assinatura em São Francisco por representantes de 50 países. Estávamos nas últimas semanas de uma guerra de proporções nunca vistas. Os objetivos da Carta eram, e continuam a ser, manter a paz e a segurança internacionais, assegurar a igualdade e a soberania dos Estados-membros, promover a cooperação, o desenvolvimento e a liberdade universais, e assegurar o respeito pelos direitos humanos de todos, homens e mulheres. Em 1945, a questão da igualdade do género foi enfática e repetidamente mencionada, um indicador mais do caracter vanguardista das lições aprendidas com a guerra.

Considero a Carta das Nações Unidas uma declaração fundamental no domínio das relações internacionais, apesar de ter sido escrita e aprovada há oito décadas. Sempre que posso, nas diferentes intervenções públicas que tenho feito ao longo da vida, refiro-me à Carta, exibindo, em simultâneo, uma cópia da mesma. Acredito no poder redobrado da perceção visual. E acontece sempre a mesma coisa: a quase totalidade dos presentes nunca vira o documento, que tem a dimensão de uma pequena agenda de bolso. Pior, desconhece o seu conteúdo, com exceção de uma ou duas referências superficiais, em geral relacionadas com a composição do Conselho de Segurança.

Há dias, numa oportuna conferência organizada pela Câmara Municipal de Évora sobre a paz, disse aos participantes que se eu fosse eleito presidente da câmara da rua onde nasci nessa cidade, uma maneira simbólica de falar, como é óbvio, a primeira ação pública que faria seria oferecer um exemplar da Carta a cada família residente nessa rua. Acrescentei ser fundamental que os cidadãos conheçam os princípios da Carta e que exijam aos seus governantes que os mesmos sejam ensinados, divulgados, respeitados e cumpridos. Só assim se trabalha para a paz, o respeito pela dignidade dos seres humanos e se dá resposta aos grandes desafios do mundo. Cada cidadão deve considerar-se como um guardião da Carta das Nações Unidas. A educação para a cidadania deveria ter o estudo desse acordo no topo das matérias curriculares.

Fala-se muito de uma ONU em crise. Mas a verdade é bem mais complexa. Todos os países querem ser membros de pleno direito da organização, incluindo o Kosovo e a Palestina, dois Estados que o não são por impedimentos que têm a ver com as rivalidades espelhadas no seio do Conselho de Segurança. E ao aderirem à ONU, cada novo membro toma como compromisso o respeito pela letra e o espírito da Carta.

É aí que reside uma boa parte da crise atual. O compromisso é solenemente aceite e depois vergonhosamente ignorado e atraiçoado. E não são apenas as contribuições monetárias que não são cumpridas. É verdade que o suporte financeiro é essencial para que o sistema possa desempenhar as suas funções prioritárias. E que países com enormes responsabilidades na cena internacional não pagam o que devem – os EUA de Trump são o exemplo mais flagrante – ou pagam tarde e a más horas, como é o caso da China. Em 2024, a China pagou uns dias antes do fim do prazo, entre o Natal e o Ano

Novo, o que impediu o secretariado da ONU de fazer uso desses recursos. E a regra é que quando a quotização não é gasta, a ONU tem de devolver o saldo não utilizado ao país contribuinte. Assim, pagar quase na 25ª hora é na prática equivalente a não honrar a responsabilidade financeira.

São muitas as vozes que dizem que a crise assenta também na reforma sempre adiada do sistema onusiano. Reconheço que existem remodelações que são necessárias. A ONU, como a maioria das instituições burocráticas, funciona, nalguns aspetos, como uma árvore política de plástico, à qual os Estados acrescentam novas tarefas, quais estrelas decorativas que apenas servem para fingir pretensas preocupações e iludir os respetivos eleitorados, luzes em duplicado, mandatos que agradam a certas clientelas políticas. Menciono muitas vezes uma missão político-militar que chefiei à qual o Conselho de Segurança atribuiu mais de cinquenta prioridades, que eu na reunião seguinte do Conselho consegui reduzir para três ou quatro, tendo em conta o tempo disponível e as realidades no terreno.

A verdadeira crise da ONU reside na falta de respeito pela Carta das Nações Unidas. A ética internacional corre o risco iminente de se desmoronar. É como se estivéssemos a voltar aos anos anteriores a 1939. Sabemos no que isso resultou. Sabemos, igualmente, que só se responde às grandes crises se houver coragem política e um discurso que nos lembre os colossais desastres do passado, e nos permita voltar a comutar sem demoras a agulha para o futuro.

* Conselheiro em Segurança Internacional, ex-secretário-geral-adjunto da ONU

Diário de Notícias
www.dn.pt