Não é fácil escrever uma crónica nos dias que vão correndo. Cada dia a nossa capacidade de indignação é posta à prova, porque todos os valores por que sempre nos orientámos, nós democratas, são agora espezinhados e arrogantemente desdenhados pelas potências dominantes e pelas tendências emergentes. Todos os dias há uma nova decisão de Trump para nos revoltar, seja a extinção da USAID, seja o projeto de deportação massiva dos palestinianos para fora da sua terra. Como por toda a Europa, e entre nós também, há agentes e movimentos políticos que não só não se revoltam, como aplaudem com entusiasmo a nova política norte-americana, sentimo-nos encurralados frente a uma maré implacável, pronta a jogar-nos contra os rochedos das costas escarpadas da História.José Gil, num lúcido ensaio surgido no Público, dá o justo nome de neofascismo ao mundo que se prepara para emergir e chega a pensar que só a catástrofe climática, que os senhores do dinheiro não temem, nos poderá, por fim, vir a salvar. Talvez. Mas não podemos afrouxar a resistência a este estado de coisas. É verdade que é extremamente difícil mantermos essa energia, pois que é muito fácil sentirmo-nos impotentes face aos desastres por vir. Parece mesmo uma evidência a nossa incapacidade de lutar. E a complacência com que muitos encaram esta verdadeira revolução nas relações de força mundiais não deixa de nos lembrar o poema de João de Deus A cabra, o carneiro e o cevado.Como já ninguém se lembra deste poema, nem de João de Deus, poeta do século XIX muito datado, mas importante na História da nossa Poesia (saiu recentemente na Imprensa Nacional uma excelente biografia deste poeta, escrita por José Alberto Quaresma), vou resumir brevemente o que conta o poema.Ora trata-se de uma cabra, um carneiro e um porco (ou cevado) que seguem juntos numa carroça, a caminho do mercado. Enquanto o porco berra com todos os seus pulmões, a insurgir-se contra aquele transporte, que já sabe que os leva a todos para o matadouro, a cabra julga que irá ser ordenhada e o carneiro que irá ser tosquiado, pelo que se mantêm calmos e silenciosos.O carroceiro, farto da gritaria do porco, grita-lhe que o seu comportamento é inadmissível e exorta-o a seguir os exemplos dos seus companheiros cabra e carneiro, que, “porque tiveram outra criação”, têm a inteligência e a boa educação de não atroarem o ar com berros.O porco, o mais sensato destes animais, responde que não partilha as ilusões dos seus companheiros de viagem, porque bem sabe que “porcos não se ordenham, nem tosquiam” e, portanto, o destino daquela jornada não pode ser senão o matadouro. E por isso grita, do fundo da sua alma, “Aqui d’El Rei! Aqui d’El Rei!”Talvez faça falta ao curso das coisas no mundo atual que haja mais e mais porcos a gritar “Aqui d’El Rei”, face a cabras e carneiros, que de nada se dão conta e tudo acham natural (E este “Aqui d’El Rei” é apenas uma expressão bem portuguesa, e não apela, neste contexto a qualquer restauração da Monarquia!). Apenas quero dizer, com o poema de João de Deus: não nos deixemos levar cegos para o matadouro!Diplomata e escritor