A barata e o chinelo
Como cerca de 40% da população do Brasil vive com rendimento mensal abaixo dos 450 euros e outros 40% com valores entre os 450 e os 1300, é, obviamente, essa massa de 80% que decide eleições.
Depois de Lula da Silva chegar ao poder com o mantra “vamos colocar o pobre no Orçamento”, cerca de 50 milhões desses mesmos brasileiros saltaram das classes socioeconómicas D e E para a C. Com os programas sociais dos primeiros Governos do PT, passaram a ter dinheiro para pagar a prestações os primeiros aparelhos de TV, frigoríficos e micro-ondas, conseguiram financiar a primeira casa, viajaram pela primeira vez de avião e viram os filhos serem os primeiros da história das famílias a frequentarem uma universidade.
Por gratidão, cálculo ou ambos, uma larga fatia desses 80% tornou-se, por isso, fiel eleitora de Lula ou de quem ele indicasse - como a eleita e reeleita presidente Dilma Rousseff, por exemplo.
Até que chegou a Lava Jato, a megaoperação anticorrupção que investigou negócios ilegais entre empresas, na maioria construtoras, e políticos: aquelas pagavam as campanhas eleitorais destes em troca de favores na concessão de obras.
Políticos de mais de 30 partidos foram atingidos - o MDB, de Michel Temer, teve 117 réus, mais do dobro do que o PT, de Lula, com 54, o PSDB, de Fernando Henrique Cardoso, José Serra ou Aécio Neves, chegou a 31, e o PP, o partido, à época, de Jair Bolsonaro, a 26.
Mas Lula era o alvo político da operação como a História e o percurso do juiz que a conduziu, Sérgio Moro, provariam, e hoje o eleitor em geral atribui a Lava Jato a ele e ao PT, absolvendo todos os demais políticos e partidos.
Por outro lado, os anos do PT no poder traduziram-se em políticas muito progressistas no plano comportamental, que a TV Globo, liberal nos costumes, como o partido, mas também na economia, aqui em contramão a Lula, acompanhou.
Aproveitando o facto de a maioria da população, branca ou negra, pobre ou rica, ser acima de tudo conservadora, os reacionários evangélicos contrapuseram-se à ofensiva identitária dos poderes executivo, PT, e mediático, Globo, demonizando ainda mais a esquerda - além de corrupta, ela é devassa, repetiram sem parar nas redes.
“No entanto, se tenho uma TV a cores, uma casa digna e uma filha advogada, a eles, Lula e PT, o devo”, pensa uma parte, cada vez menor, daqueles 80%.
A maioria, principalmente as novas gerações, para quem os primeiros Governos de Lula são uma memória distante, é mais permeável ao discurso da “teologia da prosperidade”, a doutrina pentecostal segundo a qual a abundância material de cada um é desejo de Deus desde que, claro, o fiel pague um dízimo ao pastor.
E ao discurso de coaches (grosso modo iguais a pastores, mas sem usar Jesus a cada frase) que exaltam a uberização da economia: chamam, por exemplo, os motoristas de aplicativo de microempreendedores donos do próprio horário, omitindo que em penosas jornadas, às vezes de 18 horas diárias, nem sequer de casa de banho usufruem.
Jair Bolsonaro surfou na onda da Lava Jato e dos reacionários. Mas Pablo Marçal, o coach que cativou 28,15% do eleitorado nas Municipais de São Paulo, cavalga naquelas e ainda na dos microempreendedores.
Um e outro parasitam o segmento a quem o sociólogo Jessé de Souza chama no seu último livro “pobre de direita” e a quem o povo que permanece fiel a Lula chama “as baratas que votam no chinelo”.