A arrogância dos bons é o perigo do Brasil

"Quem é você", pergunta Fausto a Mefistófeles, "sou parte da energia que mal sempre presente, mas bem sempre cria", ele diz. Fausto, de Goethe, desvela algo muito pontual da condição humana: somos bons e somos mal. Passado alguns anos Guimarães Rosa versou "quem quer o bem em demasia, faz o mal por principiar". Qualquer discurso hegemónico e imposição de certezas, acaba sendo um mal por princípio porque impedem que cada um torne-se si mesmo ou a continuidade do que cabe ser, como disse um poeta.

Essa é a arrogância dos bons. E o político brasileiro é sintoma do povo. Falar em nome do bem é perigoso. Talvez por essa razão uma boa teoria de justiça é aquela que se afasta de um sentido de bem ao sugerir uma justiça como equidade. Precisamos ser mais que bons. Precisamos saber errar, mudar o curso, voltar e começar de novo e fazer ajustes. Quem é bom é perfeito e o perfeito não muda.

Quem somos afinal, senão nossas paixões? Ódios, amores, ciúmes, desejo, compaixão... somos movidos por páthos e para páthos. Seres páthos-logicos, portanto. As paixões nos afetam, nos colonizam, nos transbordam. Mas a palavra as suaviza, é o caminho para sua vazão.

Estas eleições são uma escolha entre a palavra e a paixão-ato.

Mas não há lógica na paixão e isso talvez explique o fenómeno do Estado de Minas Gerais que ao mesmo tempo elegeu uma bancada bolsonarista para o Congresso e Lula como presidente. As paixões são contraditórias.

A bem da verdade, da minha claro, limitada portanto, não estamos votando em planos políticos ou propostas de gestão. Estamos a eleger os personagens que mais nos encantam nessa novela Brasil. Velhos conhecidos reinventados, os universais que pululam nosso imaginário desde nossos pais e avos. É o truculento bonzinho, os revolucionários frágeis, os resistentes jovens, o painho cuidador. Estamos elegendo o que admiramos, o que nos apaixona. Torcendo pelo mocinho, mas falando do vilão a todo o tempo. Votamos nos performáticos, nos personagens mais caricatos ou em em quem nos afeta as vísceras. Não é possível julgar quem votou na branca evangélica Damares, no branco hetero Sergio Moro, no General Mourão, no branco hetero Magno Malta como também não é possível questionar quem votou na negra Dandara, na negra Benedita da Silva, na negra Carol Dartora, na travesti Robeyonce, nas lideranças indígenas Sonia Guajajara, Ceilia Sakriaba e Vanda Witoto, nas mulheres trans Duda Salabert e Erika Hilton na velha Luiza Erundina.

E o resultado desta rodada mostrou que o centro/direita levou 65% da Câmara e 70% do Senado, o que significa a manutenção da lógica de desmonte do Estado, por outro lado a diferença entre Lula (48%) e Bolsonaro (43%) que ficou em torno de 5% esta a dizer que a maioria dos brasileiros não está gostando da narrativa que Bolsonaro representa.

Não há lógica na política mesmo que tentemos inventá-la. Talvez haja num capitalismo sorrateiro e de interesses que a nós, humanos de algibeira, nem sonhamos imaginar os caminhos e estratégias. Afinal, caímos como páthos num jogo alheio. E dançamos como marionetes na posse imaginaria de um discurso de bem intocável. Estamos a ferver juntos na mesma panela. Mesmo assim nos achamos mais esclarecidos que outros, quanta ingenuidade, quanta arrogância a nossa. Esquecemos que a tal elite será sempre elite não importando sua ideologia e cor da camiseta e se precisar pegará o primeiro voo para Paris se sentir-se ameaçada. E o vulnerável sempre precisará de ajuda e compaixão...

Temos um Brasil dividido. Mas me parece leviano afirmar que o Brasil está dividido entre fascista e racista de um lado e esclarecido e vulneráveis de outro; ou famílias de um lado e desviados de outros; ou violadores e alvos; ou opressores e oprimidos... As relações humanas são tão mais complexas. Mal nos conhecemos e pouco conversamos entre nós. Estamos seguros nas nossas bolhas.

Mas estamos divididos sim, por afetos. Estamos divididos em nós mesmos, na nossa própria dificuldade em perceber o que somos e o que queremos. O político é o sintoma do brasileiro. Queremos que painho ou o messias ocupem o lugar que há muito tempo deveria ser destituído pelos filhos crescidos. Mas crescer é assumir as perdas que acompanham as escolhas do nosso querer.

Há uma surdez no Brasil em relação ao que nos constitui e ao que nos fragiliza. Queremos crer sermos imunes às paixões, mas elas nos atravessam. Há uma surdez entre nós e sobre nós mesmos. E essa surdez faz com que ignoremos ser a política este lugar de afetos e interesses. E nos faz crer que o racismo e a violência estruturantes da sociedade brasileira afeta apenas a alguns. Ela nos compõe e orquestra nossas relações. Ninguém escapa. Nem eu, nem você, nem quem mora em Portugal. Digo isso porque de alguma forma, com mais ou menos sofisticação, com mais ou menos atenção, somos atravessados por aquilo que nos assombra.

Não há argumento contra uma paixão, tampouco evidência suficiente para altera-la ou bom senso que prevaleça, isso vale para o amor e vale para a política. Se não é possível questionar o que causa borboletas na barriga podemos questionar a razão de algumas estarem vazias e outras com indigestão de tanta fartura. A paixão não é questionável, a ação sim. E Lula passar de Bolsonaro neste primeiro turno é um recado direto de que algo precisa mudar. Devemos entender que às vezes é preciso perder alguns amores e desafetos, porque nem todo amor vale a pena, sem isso dificilmente sairemos ilesos das dinâmicas que criamos no Brasil.

A arrogância dos bons é a certeza. Transformamos afetos em uma verdade e um discurso de bem. É preciso pensar, diria Hannah Arendt. A justiça como equidade está em perceber que nunca haverá condições iguais a todos porque as estruturas são morais e temporais. Deve-se, portanto, fazer ajustes a todo tempo durante o percurso. É a pluralidade moral que permite que uma norma seja compreendida de forma prudente em uma situação concreta. A dignidade humana, por exemplo, é um termo cujo sentido exige perceber uma série de variáveis. Há sentidos basilares para sua realização sem dúvida, é necessário um ponto de partida, um corpo biológico (zoe) protegido e capaz de viver e dar condições para a existência do ser político (bios), que caracterizará a pessoa humana. O que isso exige para acontecer dependerá de fatores muito singularidades. O que não é aceitável é que alguns corpos morram precocemente. Um negro no Brasil precisa ter seu corpo muito mais protegido do que um branco classe media, uma mulher negra mais e uma mulher negra trans mais ainda. E isso não significa que a mulher branca classe media não precise de cuidado, a violência doméstica prova não ser um fenómeno de classe social. E Bolsonaro cortou verbas para combater a violência doméstica. Estou apenas destacando o risco e limitação das certezas. E o quanto o racismo e fascismos e machismos nos atravessam. Resgatar a palavra é resgatar os espaços necessários para se criar sentido. A palavra informa porque nada diz. Ela precisa ser significada no mundo.

A história mostra que ninguém liberta ninguém, mas ninguém se liberta sozinho. Eu posso quebrar os grilhões e dar suporte para a fuga, mas é preciso o desejo de mudar de lugar e correr, correr muito. Mas, em alguns casos, além de quebrar os grilhões será preciso levar no colo aquele que por anos e anos sofreu violência e aniquilamento. A diferença dos discursos de Lula e Bolsonaro são gigantescas, basta ouvi-los. E seus efeitos também são. Lula resgata a palavra, Bolsonaro valoriza a força. Estamos a escolher entre o direito de desejar e a censura em desejar. Entre a valorização da diferença como virtude e sua condenação. Porém, quem não banca seu desejo precisará mortificar o desejo do outro.

Se Lula vencer deverá negociar com o congresso bolsonarista. A vitória de Lula é uma dupla derrota a Bolsonaro. Se Bolsonaro ganhar teremos a hegemonia de um discurso de bem e o sintoma de que não conseguimos sair dos encastelamentos de certezas e que o fascismo venceu não apenas pelo discurso e práticas de uns, mas pela arrogância de tantos, principalmente dos que se negaram a conversar, o que também é um tipo de assombração.

Psicanalista e escritora, doutora em ciências humanas

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG