A armadilha de Tucídides
A 9 de novembro de 1989, faz hoje anos, a esperança num mundo melhor fazia desabar o Muro de Berlim e abria caminho ao colapso da União Soviética. Quase três décadas depois, as duas superpotências do século XXI parecem precipitar-se numa nova Guerra Fria.
Estados Unidos e China arreganham dentaduras e avançam numa espiral de ameaças, acusações de espionagem e sanções com consequências imprevisíveis, para os próprios e para o resto do mundo - nós, portanto. Do confronto comercial e tecnológico à competição armamentista e à luta pela influência nos vários continentes, os dois gigantes protagonizam um combate pela hegemonia global cheio de perigos e final incerto. A hostilidade crescente manifesta-se em todas as áreas, geográficas ou setoriais: espionagem, propaganda, força militar, símbolos - insistindo em confirmar que a história se repete. A Guerra Fria do século XX entre o Kremlin e a Casa Branca ameaça replicar no século XXI, agora entre o antigo vencedor, os Estados Unidos, e a nova potência em ascensão, a China. Nas últimas semanas, ambos deram corda ao atrito, numa dança frenética de confrontos, em que o passo de um foi correspondido pelo outro numa simetria tão perfeita como inquietante e perturbadora.
Nos manuais da guerra, uma teoria conhecida como Armadilha de Tucídides postula que, quando uma potência em ascensão ameaça o papel dominante de uma outra potência estabelecida, o embate é quase inevitável. E, ao que parece, já começou. Uma segunda Guerra Fria, à moda da anterior, significa que estamos diante de um novo conflito que se adivinha prolongado e que, em princípio, não envolve um confronto militar direto entre as duas nações. As hostilidades são travadas nas áreas económica, política, de comunicação, cibernética e nos submundos dos serviços secretos e da sabotagem, mas também através de enfrentamentos armados mais limitados, entre países aliados de uma e outra superpotências. É um duelo dançante, perigoso e em ritmo cada vez mais intenso, com duração e final imprevisíveis. E quer seja na escolha da tecnologia 5G, seja na decisão sobre sistemas de defesa ou na votação de resoluções internacionais, corre o risco de arrastar - como na primeira Guerra Fria - o resto dos países para um ou outro lado da pista de baile.
É certo que os EUA e a China estão destinados a competir. Mas parece igualmente óbvio que também devem colaborar. Existem inúmeros riscos e problemas globais que ameaçam os interesses nacionais destas superpotências e que não podem ser mitigados ou eliminados por qualquer uma delas, por conta própria e agindo sozinha. Assim é no caso da luta contra o aquecimento global, bem como no combate pela sustentabilidade sanitária. E essa desejável coordenação não vai ocorrer por altruísmo, solidariedade internacional ou porque, simplesmente, é a resposta mais razoável. Isso vai acontecer porque convém aos poderosos. Porque é do interesse nacional destes dois gigantes que o aumento da temperatura do planeta ou pandemias mais perigosas que a covid-19 não conduzam a cataclismos devastadores que não respeitam oceanos nem muito menos fronteiras. Xi Jinping, o líder sínico, colocou a que descreveu como uma questão fundamental para este século: "Será que a China e os Estados Unidos serão capazes de gerir adequadamente as suas relações? A questão interessa ao destino do mundo, e ambos os países devem responder-lhe." Ora, nem é preciso saber mandarim para traduzir este chinês.
Jornalista