A angústia de atender o telemóvel
Atender o telemóvel quando no visor aparece um número que não faz parte da nossa lista de contacto é hoje em dia uma atividade de risco que requer grandes doses de coragem e determinação. Chamada sim, chamada não lá vem uma voz gravada a tentar convencer-nos de que a nossa conta foi movimentada, que uma qualquer encomenda está presa na alfândega ou que precisamos de repor as palavras-passe da Netflix, do Paypal ou outro serviço qualquer. Isto a somar ao regular assédio comercial de operadores de telecomunicações, de TV cabo, fornecedores de energia, seja diretamente ou através de agentes em busca de comissão, que nos querem convencer a mudar dia sim, dia não, garantindo todos eles “as melhores condições do mercado”.
As fraudes telefónicas e as chamadas comerciais intrusivas aumentaram de tal forma nos últimos anos, que se tornaram uma das grandes pragas dos nossos tempos. Quem não conhece alguém próximo que já caiu na esparrela de uma qualquer burla destas, por mais letrado e consciente que seja? E nem adianta sequer bloquear os números indesejados, porque logo surgem outros novos com as mesmas táticas.
A verdade é que, hoje, quando o telemóvel toca, seja o número nacional ou internacional, o primeiro instinto é não atender a chamada. E se atender, que palavras são seguras? Penso que nem o célebre pastor do velhinho anúncio da Telecel arriscaria um “tou xim” por estes dias, com medo de estar a autorizar um qualquer esquema perverso que lhe desse cabo do rebanho.
No meio deste faroeste tecnológico que deixa completamente desprotegidos os consumidores, não se percebe a complacência com que legisladores e reguladores têm encolhido os ombros. Em Portugal, por lei, as empresas só podem contactar os consumidores que tenham dado consentimento prévio e expresso, mas sabemos como a realidade é bem distinta e a fiscalização dessas práticas quase ineficaz.
Aqui ao lado, o governo espanhol resolveu agora tentar meter um pouco mais de lei e ordem no assunto. Entre as medidas anunciadas está, por exemplo, proibir as empresas de fazerem chamadas comerciais a partir de números de telemóvel, podendo estas apenas ligar de telefones com prefixo 800 ou 900 ou números fixos com indicativos de província, para que sejam facilmente identificáveis. Além disso, para dificultar a vida aos golpistas que usam técnicas como roubo de identidade ou vishing, as operadoras ficam obrigadas a bloquear chamadas de números falsos.
Estas regulamentações vão acabar com todas as burlas e telefonemas indesejáveis? Provavelmente não. Sabemos que os trapaceiros andam sempre um passo à frente da lei. Mas pelo menos dificultam-lhes a vida, reforçam mecanismos de segurança e credibilizam as instituições. E nós precisamos disso para nos libertarmos desta angústia em que se transformou o simples ato de atender o telemóvel.
Editor do Diário de Notícias