A América e a democracia global – o que faltou dizer
No artigo publicado aqui no passado dia 13 de julho deste ano, comentei a pretensão anunciada pelo presidente americano Joe Biden de liderar o combate global para defender a democracia, ameaçada por aquilo a que se tem chamado "derivas autoritárias". Apontei então algumas limitações dessa pretensão. As duas teses principais do artigo eram que, para desempenhar esse papel, a principal potência mundial precisa, primeiro, de resolver o problema das ameaças internas à sua democracia, protagonizadas pelo trumpismo, e, segundo, de articulá-lo com as principais instituições multilaterais existentes, a começar pela ONU. Só faltou concluir que, caso contrário, estaremos de volta à "América de Bush", quando os EUA pensavam que podiam implantar a democracia em outros países (os que lhes interessavam) à custa de invasões e "revoluções" híbridas.
As últimas decisões da administração Biden em relação aos acontecimentos em Cuba obrigam-me a fazê-lo hoje. A insistência no embargo (que, como me alertaram economistas amigos, pode não ser o principal motivo, hoje, da crise económico-social vivida em Cuba, mas também não pode ser olimpicamente ignorado) e as sanções adotadas nos últimos dias contra governantes cubanos responsáveis pela repressão às recentes manifestações no país suscitam, no mínimo, a questão: o America's back é um genuíno projeto de defesa da democracia global - aspiração, mais do que legítima, justa e necessária - ou apenas uma estratégia para retomar a velha "guerra fria"?
Tenho de dizer que, tendo sido formado num ambiente cultural de esquerda, cujos modelos de análise me continuam a ser úteis e de cujos princípios éticos, assentes na solidariedade social, não abdico, mudei muitas ideias feitas em relação à democracia americana após ter vivido algum tempo nos Estados Unidos, por motivos pessoais. Em termos de democracia interna, a principal potência mundial tem, inegavelmente, numerosos exemplos a dar às outras nações. Mas é difícil, para não dizer impossível, acreditar na bondade americana para defender a democracia global, quando a velha política de dois pesos e duas medidas do Ocidente se mantém inalterável.
Para não falar na grande aliança com a Arábia Saudita e outros casos "cabeludos", darei um exemplo comezinho: em vários países cujo pedigree democrático é "insuspeito", muitas manifestações também têm sido violentamente reprimidas e vários manifestantes, detidos; por que motivo Washington não aplica sanções a governantes desses países responsáveis pelos referidos factos? Se não quiserem makas com os seus principais aliados europeus, poderiam começar por fazê-lo com certos governos latino-americanos, como o Brasil, onde até vereadores e deputados têm sido presos por críticas a Bolsonaro.
Esclareço, a terminar, que concordo com a necessidade de promover e defender a democracia global. Mas reitero que, hoje, a principal ameaça contra ela provém da extrema-direita mundial, cada vez mais inspirada no trumpismo e outras forças destrutivas, como determinadas big tech. A esquerda estalinista e maoista perdeu a batalha ideológica, pelo que o "comunismo", além de nunca ter existido de facto como modelo económico e social diferenciado, deixou de ter qualquer força atrativa significante, nos dias que correm. Poucos querem ser "comunistas" e "maoistas" à moda antiga, mas muitos querem serem trumps. O espetro do "comunismo" é usado pela extrema-direita mundial para reforçar a ditadura do capitalismo financeiro, potenciado pelas novas tecnologias. Será preciso recordar aos incautos que, mesmo que eventualmente ancorada numa retórica "liberal", o objetivo da extrema-direita é acabar com a liberdade?
Sim, é preciso defender a democracia global. Mas isso não pode ser uma missão exclusiva de um país, por mais poderoso e messiânico que o mesmo pareça. É preciso um debate igualmente global sobre os melhores caminhos para fazê-lo.
Escritor e jornalista angolano, publicado em Portugal pela Caminho