Ruy Cinatti (1915-1986) é o exemplo de um espírito desperto para a aventura e para a poesia. Silvicultor e antropólogo de profissão, foi jovem funcionário em Timor, onde estabeleceu uma relação profunda de amizade e confiança com o povo desse jovem país, tornando-se uma referência cultural e literária da língua portuguesa pela sua obra, pela participação nos Cadernos de Poesia, ao lado de Tomás Kim, José Blanc de Portugal e Sophia de Mello Breyner, pela direção da revista cultural Aventura e pelo apego à causa timorense. Acabam de ser publicados dois pequenos volumes com inéditos de Cinatti: Diários 1933- 1943, com introdução de Peter Stilwell; e A Alegria do Descobrimento, com introdução do mesmo e de Vasco Rosa. Constituem duas obras que nos permitem conhecer melhor o inspirado poeta da língua portuguesa.
Ao definir Aventura, que foi sempre uma referência sua na vida, considerou-a como uma poderosa marca e como uma atitude que superava a dimensão individual como “atitude espiritual e maravilhosa (…) que nos levou a nós portugueses, pelas várias estradas do mundo, e que eu considero, pela vida mais intensa que se vive, a maior aproximação de Deus”. Ao longo da existência, Cinatti teve esta afirmação como uma orientação, não ao encontro de uma abstração, mas como um compromisso entre pensamento e ação. Longe do improviso, haveria que cuidar do trabalho e da persistência. Não há aventura sem preparação e sem empenhamento. “Como é admirável viajar, não importa aonde, desde que o desconhecido nos espera! Amanhã hão de surgir novas coisas, tudo que é feito de imponderáveis, novas paisagens, outras faces, outras nuvens que hão de distrair do sonho e do quotidiano inevitável”.
Nos Diários encontramos a descrição de uma curiosa viagem às Berlengas, o relato de um Cruzeiro às colónias portuguesas da África Ocidental (1935), a experiência no curso de Verão na Universidade britânica de Exeter, além de notas esparsas contemporâneas da publicação doas primeiros livros de poemas. Em A Alegria do Descobrimento reúnem-se escritos dispersos, desde o tempo em que o autor frequentou os Pupilos do Exército aos períodos do
Instituto Superior de Agronomia, da militância na Juventude Universitária Católica, até ao lançamento dos Cadernos de Poesia e dos dois primeiros livros de poemas Nós não Somos deste Mundo e Anoitecendo a Vida Recomeça, ou à criação da revista Aventura. No primeiro número desta, Cinatti diz estar convencido “da impossibilidade de nos circunscrevermos a qualquer forma particular, e já arcaica, de cultura; daí lutarmos por um espírito de simpatia em relação a novos descobrimentos; procurarmos apresentar, através das suas obras, homens que se desconhecem e que, arrastados pela mesma aspiração, porventura se combatem”. Em cada lugar que visita, sente-se o naturalista, capaz de ligar natureza e paisagem, preocupado com a vida das gentes e sempre poeta. “Ó Fernão Mendes Pinto (…) já não te admiro, mas amo-te. Quero-te como a um irmão”. “As mornas, poesias cheias de lirismo produto do elevado sentimento artístico dos cabo-verdianos, em que o sentido da saudade ocupa lugar primacial”, são canções de embalar, canções de amor e de paixão, são canções de recordar… Há a sensação de qualquer coisa melíflua e sensual ao ouvir-se falar o crioulo. E Ruy Cinatti procurou viver essa comunhão com a riqueza de diferenças, a demonstrar a verdadeira alegria do descobrimento.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian