2024 é um ano crucial, a exigir coragem e respostas à altura

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Passei décadas a chefiar missões políticas, de paz e de desenvolvimento das Nações Unidas. Foi na ONU que cresci profissionalmente e aprendi a resolver conflitos, alguns bastantes sérios, em que a morte e a dor espreitavam por detrás de cada duna, árvore ou rochedo. Ganhei, assim, uma visão alargada do sistema internacional e da maneira como o relacionamento com o Conselho de Segurança deve ser feito. Depois, durante anos, trabalhei, como mentor civil, na NATO, na preparação de futuros chefes de operações militares, sublinhando repetidamente a necessidade de obter nessas operações o apoio das populações e das organizações humanitárias.

A experiência ensinou-me a importância primordial que deve ser dada à salvaguarda das vidas das pessoas. Quando me dirigia aos generais, aos comandantes das forças de polícia e aos agentes de segurança da ONU, a prioridade era acentuar o valor da vida. A dos nossos, que faziam parte da missão, bem como a proteção da vida dos outros, simples cidadãos, suspeitos ou não de colaborar com os insurgentes, e até mesmo as vidas dos inimigos.

Nada se resolve de um modo sustentado se não houver um profundo respeito pelas populações civis que vivem de cada um dos lados das barricadas, se se tratar os outros como gente sem valor, a quem se pode cortar o acesso a bens vitais, como meros animais a abater sem dó nem piedade. Matar não resolve nenhum conflito. Por cada morto de hoje, surgem amanhã novos combatentes, com sentimentos ainda mais fortes de vingança. O fundamental é criar as condições para a paz, abrir as portas às negociações e ao entendimento. Uma guerra de retaliação é um erro. É uma resposta de talião, do olho por olho, dente por dente, inspirada numa ordem jurídica da antiguidade. Ou, numa hipótese mais atual, é uma guerra dirigida por líderes políticos a quem falta sensatez e clarividência.

Também tinha presente, nas minhas diretrizes, a sabedoria do genial Charlie Chaplin, na comovente personagem do palhaço Calvero. No seu filme Luzes da Ribalta (1952), Chaplin faz a determinada altura o palhaço Calvero dizer que “a vida é uma coisa linda, magnífica, até para uma medusa”. Sim, até para uma medusa, um invertebrado gelatinoso por quem poucos terão alguma simpatia. Sempre pensei que essa frase, tão singela, deve ocupar um lugar cimeiro na nossa maneira de encarar os conflitos. A política só faz sentido quando permite a cada um viver em liberdade e com segurança.

Um dos grandes desafios de 2024 é conseguir explicar este entendimento perante a medusa, a vida e o trabalho das Nações Unidas numa linguagem que certos líderes sejam capazes ou forçados a perceber. Como dizer isso no patoá perverso e de sofismas que se fala no Kremlin? Como expressar essa sabedoria num hebraico ou num árabe progressistas e com acentos tónicos de paz? Como fazer ouvir o discurso da reconciliação a personagens responsáveis por conflitos noutras regiões do globo, tendo em conta que 2023 foi um ano de aceleramento de múltiplas expressões de ódios e de radicalismos?

Temos aqui duas questões que terão de ser aclaradas e resolvidas tão rapidamente quanto possível.

Primeiro, quem não entende Charlie Chaplin e o valor da vida não deveria estar à frente de uma nação. O lugar dos criminosos de guerra é na Haia ou perante um tribunal especial criado para

o efeito, como aconteceu com a Jugoslávia ou o Ruanda. Digo isto, e sublinho-o, para que não haja dúvidas, na minha condição de quem esteve na linha da frente da fundação do Tribunal de Arusha, na Tanzânia, estabelecido para julgar os principais responsáveis do genocídio que teve lugar no Ruanda em 1994. Os precedentes existem e os responsáveis dos massacres na Ucrânia e no Médio Oriente conhecem-nos. Como sempre o fantasiam os criminosos, até podem pensar que escaparão a esses julgamentos. À velocidade a que as coisas estão a mudar, não deveriam estar tranquilos.

Segundo, o Secretário-Geral das Nações Unidas tem de ir muito além das questões humanitárias. A assistência humanitária é essencial, sem dúvida, e não pode ser esquecida. Mas trata-se de algo de curto prazo e precário, pois são muitas as situações de necessidade, enormes as tragédias em várias partes do mundo, e os recursos sempre escassos. A Carta da ONU é acima de tudo sobre soluções políticas. O Secretário-Geral deve manter um diálogo incansável com as partes e apresentar sem mais demoras um plano de paz para a Ucrânia e outro para a Palestina. Planos que tratem das raízes dos problemas, que assentem no direito internacional e que apontem com coragem as etapas políticas que o Conselho de Segurança deve considerar.

Temos de estar à altura dos gravíssimos desafios que aí estão, neste que tem tudo para ser um ano crucial na história contemporânea.

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU  

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