1 - A primeira e a última revolução portuguesa
Por estarmos às portas de comemorar o quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, reli a História de Portugal e encontrei uma outra, no passado, com algumas similitudes.
É sabido que as revoluções são factos históricos extraordinários e complexos e, por serem únicos e irrepetíveis, qualquer tentativa para procurar analisá-las e compará-las com as anteriores ou posteriores, fora ou dentro dos respectivos contextos, pode parecer absurda, no entanto, constatamos que a primeira revolução portuguesa, desencadeada a partir de 6 de Dezembro de 1383, e a última, que se deu em 25 de Abril de 1974, sendo distintas e distantes, todavia, têm parecenças, que gostaríamos de assinalar, embora estejam separadas por quase seis séculos de distância.
Desde logo na localização do palco principal das duas revoluções, a cidade de Lisboa, como cabeça do reino, no passado distante, e como centro político, económico e social, no período mais recente.
Os acontecimentos relevantes tidos lugar na capital portuguesa, que depressa se alastraram pelo país, - outrora de forma mais lenta, em virtude dos meios de comunicação serem exíguos e rudimentares, e em escassas horas em 1974, com destaque para o papel fulcral desempenhado pela rádio, na fase inicial, e depois pela televisão, para a divulgação do evento -, transformaram Portugal de maneira estrutural, marcando de forma decisiva as duas épocas e o seu porvir.
Existem numerosas razões que fundamentam as duas revoluções, mas a principal residiu no descontentamento prolongado da população portuguesa e na sua recusa em aceitar as soluções propostas pelos detentores do poder político dos respectivos períodos históricos.
Em 2 de Abril de 1383, com o casamento de D. Beatriz, filha do rei D. Fernando e da rainha D. Leonor Teles, com o rei D. João I de Castela, e de acordo com as cláusulas do Tratado de Salvaterra de Magos, que estavam associadas a esse enlace matrimonial, era previsível que Portugal viesse a perder a sua independência.
Na época mais recente, com Marcello Caetano como primeiro-ministro de Portugal, a partir de 27 de Setembro de 1968, a prosseguir, no essencial, a
política delineada pelo seu antecessor, António de Oliveira Salazar, não só no âmbito interno como, sobretudo, no ultramarino, fazia com que continuasse a grassar a insatisfação e o descontentamento em vastos sectores da população que, sem se descortinarem quaisquer válvulas de escape, apontava para o caminho da ruptura.
Se D. João, Mestre de Avis, havia sido preso e quase executado pela sua cunhada, rainha D. Leonor, quando o rei D. Fernando ainda era vivo, e estando os infantes D. João e D. Dinis, filhos do rei D. Pedro e de D. Inês de Castro, refugiados em Castela, por razões várias, era sobre D. João, Mestre de Avis, de bastardia indubitável, também filho do rei D. Pedro I e de Teresa Lourenço, que os olhos dos portugueses passaram a estar concentrados, tanto por aqueles que eram favoráveis como contra a possibilidade da fusão da coroa castelhana com portuguesa.
Como a ditadura vigente, saída da revolução de 28 de Maio de 1926, não dava mostras de secundar a evolução ocorrida em vários países europeus, procurando mudar o rumo dos acontecimentos, através da descolonização e encaminhamento do país para a democracia; como se revelava ser difícil, senão impossível, alterar o regime político por via eleitoral, em virtude das eleições não serem livres, de haver viciação nos cadernos eleitorais e erros grosseiros na contagem dos votos; como muitos descontentes, - ao manifestarem a sua insatisfação de forma pública ou dissimulada, chegavam a ser perseguidos e presos -, necessitavam de viver na clandestinidade ou tinham que fugir do país, a esperança de certos sectores da população começou a ser direccionada para o exército que, embora fosse garante das instituições e suporte principal do próprio regime, passou a ser também olhado como sendo capaz de actuar de forma diferente e de mudar a situação política.
Apesar de ter havido a revolta de cerca de três mil mesteirais, besteiros e homens de pé, contra o casamento do rei D. Fernando com D. Leonor Teles, de terem ocorrido manifestações violentas dos populares contra os pregões a favor da rainha D. Beatriz em Lisboa, Santarém, Elvas e em outros lugares, esses expressivos avisos, não travaram nem fizeram esmorecer os desejos daqueles que pugnavam pela fusão das duas coroas.
Assim também as diminuições territoriais ultramarinas, efectivamente acontecidas, como a anexação, em 1954, dos enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, governados pelos portugueses desde 1783, por forças favoráveis à
União Indiana; a perda da fortaleza de São João Baptista de Ajudá para a República de Daomé, hoje Benim, em 1961; e a invasão, conquista e anexação do Estado Português da India pela União Indiana, iniciada em 18 de Dezembro de 1961, não fizeram alterar a intransigente política ultramarina dos governantes portugueses.
Na ausência dos infantes D. João e D. Dinis, D. João, Mestre de Avis, representando um perigo latente para os planos políticos e para as pretensões governativas hegemónicas da rainha D. Leonor Teles, legítima detentora do poder, é por ela promovido, afastado dos centros de decisão, e enviado como fronteiro da comarca de Entre-Tejo-e-Odiana.
Com a guerra no Ultramar a grassar desde 1961, em ritmos diferentes em Angola, Guiné e Moçambique, e com três frentes activas de combate no décimo terceiro ano, no dia 15 de Março de 1974, os generais Costa Gomes e António de Spínola, - autor do livro Portugal e o Futuro, que advogava uma solução política e não militar para a guerra do ultramar -, são demitidos dos cargos de Chefe e de Vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas.
Se após a morte do rei D. Fernando, o temoroso D. João, Mestre de Avis, olhado com desconfiança pela rainha D. Leonor, sabendo que corria o risco de vida, precisava, por todos os meios, de evitar que isso viesse a acontecer, também algo de intrincado e de difícil aceitação se passava com os oficiais do quadro permanente do exército português, porque além de estarem cansados, e até saturados de combater na guerra do Ultramar, necessitavam também de enfrentar outros problemas específicos, de entre eles, o da oposição quanto à abertura da possibilidade de rápida progressão dos milicianos para o quadro permanente, através de um curso acelerado na Academia Militar.
Na sequência de três guerras perdidas contra os castelhanos, com a marinha destroçada, o exército derrotado e desmoralizado, e com a agudização da situação política, social e económica do país, após cinco tentativas falhadas, vai sobressair a figura e a acção de Álvaro Pais, cidadão de Lisboa, homem honrado e de boa fazenda, no dizer de Fernão Lopes, que fora chanceler-mor, -cargo equivalente à categoria de actual primeiro-ministro -, no reinado de D. Pedro I e de D. Fernando.
A sua influência era de tal ordem que, apesar de, a seu pedido, ter sido honradamente aposentado, continuava a influenciar e dirigir a gestão pública, porque, os vereadores da capital nada faziam sem o consultar. É este notável
personagem que prepara nos bastidores, em Lisboa, a conspiração para eliminar o conde João Fernandes Andeiro, considerado amante da rainha e o principal elo de ligação entre Portugal e Castela.
Após o fracasso da revolta do Regimento das Caldas de Rainha, em 16 de Março de 1974, no dia 24 de Abril de 1974, a partir do Posto do Comando, situado no Regimento de Engenharia n.º 1, da Pontinha, o coronel Otelo Saraiva de Carvalho, responsável pelo sector operacional da Comissão Coordenadora e Executiva do Movimento dos Capitães, que fizera duas comissões militares em Angola e uma na Guiné, acerta os últimos pormenores do plano para derrubar o governo pela força das armas.
Estando a caminho do Alentejo e desistindo de cumprir as ordens recebidas da rainha, da aldeia de Santo António, situada a três léguas de Lisboa, na manhã de 6 de Dezembro de 1383, D. João, Mestre de Avis, acompanhado de vinte homens armados, avança, decidida e destemidamente, para executar o plano engendrado por Álvaro Pais.
No citado Regimento de Engenharia n.º 1, onde estava instalado o Posto do Comando do Movimento das Forças Armadas, as operações militares, lideradas por Otelo Saraiva de Carvalho, começam às 22H55 do dia 24 de Abril de 1974, sendo uma das senhas a canção “E depois de Adeus”, cantada por Paulo de Carvalho e emitida pelos Emissores Associados de Lisboa, que serviu para assinalar o arranque da operação militar contra o regime.
Na Primeira Revolução Portuguesa, estando os conjurados, liderados por D. João, Mestre de Avis, a caminho de Lisboa, também esse líder emite a primeira senha, ordenando a seu escudeiro:
“Hiivos deamte quamto poderdes e dizee a Alvoro Paaez que sse faça prestes, ca eu vou por fazer aquello de elle sabe” (Crónica delRei dom João I da boa memória, Parte Primeira, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1977, p. 16).
No dia 25 de Abril de 1975, pelas 00H25, é transmitida a canção “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, no programa Limite, da Rádio Renascença, senha escolhida pelos militares das forças armadas para confirmar que as operações militares estavam em marcha e eram irreversíveis.
Conforme havia sido planeado, dando cumprimento às ordens recebidas, dez minutos depois são iniciadas as operações militares para ocupar os lugares estratégicos: Rádio Televisão Portuguesa, Emissora Nacional, Rádio
Clube Português, Aeroporto de Lisboa, Quartel-General, Estado-Maior do Exército, Ministério do Exército, Banco de Portugal e Companhia Portuguesa Rádio Marconi.
Às 03H45, o Rádio Clube Português difunde o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas, cujo comando divulga o objectivo de substituição do regime vigente.
Muitos séculos antes, assassinado o conde Andeiro, nos paços da rainha D. Leonor, o Mestre mandou encerrar as suas portas e disse a seu pajem que fosse apregoar, à pressa pela cidade:
“Matom o Meestre ! matom ho Mestre nos Paaços da Rainha ! Acorree ao Mestre que matam !
Quando o pajem chega aos gritos à casa de Álvaro Pais, este sabe que fora accionada a segunda senha e que o seu plano estava em marcha e era irreversível.
Conforme havia sido organizado em segredo, por ele e pelo Mestre, competia-lhe a ele e aos seus apoiantes, que estavam preparados e prestes para a acção, aliciar a população lisboeta, de forma entusiástica e vibrante, percorrendo os locais mais importantes da capital, mobilizando o povo com pedidos aflitivos de ajuda, para defender e dar cobertura imediata ao assassinato perpetrado pelos conjurados nos paços da Rainha.
Naquela conjuntura tumultuosa, em desempenho do papel, a si próprio atribuído, Álvaro Pais, de cavalo, acompanhado do pajem do Mestre, desata aos gritos e vai bradando pelas ruas de Lisboa:
“Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre, ca filho he delRei dom Pedro”.
“Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre que o matam sem por que”. (Idem, p. 21).
Séculos depois, escutada a senha, em cumprimento das ordens recebidas, também o capitão Salgueiro Maia, que havia cumprido comissões de serviço militar em Moçambique e na Guiné, e que fazia parte da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas, às três horas de madrugada, muito antes de o alvorecer do dia 25 de Abril de 1974, com 240 militares da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, comandando um esquadrão de reconhecimento com dez viaturas blindadas, conduz as suas forças em direcção ao coração da Lisboa política e, às seis de manhã, já
controlava o Banco de Portugal, a Companhia Portuguesa Rádio Marconi, e montava o cerco aos ministérios do Terreiro do Paço.
Assassinado o conde Andeiro pelos conjurados, liderados por D. João, Mestre de Avis, nos paços da rainha D. Leonor, e sendo o líder do cometimento convidado, pela desgostosa rainha, a abandonar o local do homicídio, sai dos paços e é recebido, em apoteose e triunfo, pelos eufóricos populares que, entretanto, enganosamente, haviam sido convocados pelo pajem do Mestre e por Álvaro Pais, percorrendo as ruas de Lisboa, a pedir a auxílio urgente para salvar o Mestre por, alegadamente, quererem matá-lo nos paços da rainha.
Se em 6 de Dezembro de 1383 os fidalgos e todos os acompanhantes do conde Andeiro, que haviam recebido as suas ordens para partir do paço da rainha e regressarem armados para o defender contra as forças do Mestre de Avis, embora tivessem voltado armados, preferiram fugir e porem-se a salvo por haverem sido informados de que as portas do paço estavam encerradas e, principalmente, por terem tido medo da grandeza da mobilização popular envolvente; também em 25 de Abril de 1974, havendo quebras de ligação, as forças fiéis ao regime não puderam actuar, com a prontidão necessária, por ter havido indecisão e incapacidade para as mobilizar de forma célere e dominar a revolta, com rapidez e firmeza, e ainda porque a população, em massa, saída à rua, tal como fizera seis séculos antes, apoiava e vitoriava os militares revoltosos no Terreiro do Paço, Rossio, Chiado e, em especial, no Largo do Carmo, aquando do cerco do Quartel da Guarda Nacional Republicana.
As duas revoluções estavam nas ruas de Lisboa.
Haverá também similitudes nos passos subsequentes?
Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.