Órfãos de Francisco

Publicado a

Cresci numa família católica, mas a presença religiosa em casa sempre foi discreta. Fui batizado, mas os passos seguintes na formação religiosa, como a catequese, a 1.ª comunhão ou o crisma, nem sequer foram assunto. Cresci balizado por uma série de valores cristãos e humanistas que interiorizei através do exemplo e que, hoje, procuro transmitir. Uma lista demasiado extensa para detalhar aqui, mas, tentando resumir o essencial, passou sempre pelo respeito pelo próximo, independentemente do género, raça ou cor de pele, tendo como ponto de partida o respeito por nós próprios; dar, ajudar e cuidar sem necessariamente esperar algo em troca; procurar ser conciliador e justo, sem sucumbir ao ódio; ouvir antes de julgar; pensar e agir de forma livre, sabendo questionar as chamadas “verdades absolutas”.

A espiritualidade também teve, e tem, um papel relevante no meu desenvolvimento. Não reside no que se descreve nos Evangelhos, mas em coisas tão simples como a beleza de uma planta, o conforto de um abraço ou as emoções que despertam do contacto com todas as formas de arte. Também ligo o lado espiritual à memória que fica dos que já morreram e ao impacto que as nossas ações têm no outro. Embora respeite, nunca consegui identificar-me com uma religião institucionalizada, dependente do cumprimento de um conjunto de regras, pelo que as hierarquias da Igreja pouco ou nada me diziam, já que não via nelas qualquer autoridade para padronizar ou definir aquilo que devia ser a minha vivência enquanto cristão.

Mas com Francisco senti essa empatia. A simplicidade no seu modo de vida, o trabalho que fez em defesa dos mais marginalizados, a mente aberta e progressista que revelou ao incrementar o papel da Mulher na Igreja ou a permitir bênçãos a casais do mesmo sexo e a encíclia Laudato si, de 2015, que dedicou à “Casa Comum”, abraçando a vanguarda da proteção ambiental e desafiando todos a cumprir esse desígnio para, em conjunto, se promover uma maior justiça social, deram azo a uma admiração crescente pelo líder da Igreja Católica e pelo modo como este exerceu essa liderança. Por outro lado, Francisco defendeu que a fé é “um caminho e um encontro”, não um conjunto de regras ritualísticas, em que formamos a nossa consciência individual. Também aqui me revi.

Com a morte de Francisco, de certa forma, também me sinto órfão. Porque o mundo perdeu um líder equilibrado, conciliador e agregador de diferentes consciências e vontades, precisamente quando o planeta enfrenta graves desafios em várias frentes (climáticos, guerras, divisões). Que o legado de Francisco perdure. É de líderes como ele que a Humanidade mais precisa.

Editor Executivo do Diário de Notícias

Diário de Notícias
www.dn.pt