É possível tirar o socialismo da Constituição?
Com a direita a somar mais de dois terços dos deputados na Assembleia da República, abrem-se, teoricamente, muitas possibilidades para eliminar - mais do que já se fez nas anteriores sete revisões - o pendor alegadamente socialista escrito pela Assembleia Constituinte no documento original.
A Iniciativa Liberal colocou-se à frente da corrida nesta matéria e diz que vai avançar imediatamente com um projeto para diminuir o papel do Estado na economia - por acaso, um trabalho que, no fundamental, foi feito em 1989, na era Cavaco Silva, durante a segunda revisão, bem como nas cinco revisões seguintes, em outros detalhes impostos pela União Europeia. O Chega já aplaudiu e parece querer ir ainda mais longe.
O objetivo, claramente, é reforçar os meios jurídicos para aumentar o negócio privado no ensino, na segurança social, na saúde, na habitação, na comunicação social (eliminando o serviço público). Pode mesmo surgir a ideia de acabar com todo o setor público, o que obrigaria a privatizar, por exemplo, a Caixa Geral de Depósitos, o maior banco com capital exclusivamente português.
É ainda possível que a IL ou o Chega queiram eliminar a obrigação do Estado de assegurar o direito ao trabalho, bem como o seu exercício em boas condições e com horários decentes. Poderão mesmo aparecer propostas para acabar com o salário mínimo, as garantias legislativas especiais para proteger os ordenados, os apoios às famílias, à maternidade, à juventude, à infância, aos idosos - e sei lá que mais.
Tudo isso, se a AD de Luís Montenegro embarcar nessa deriva, vai estar em cima da mesa - e tudo isso pode vir a ser aprovado. As falácias da “liberdade” e do “crescimento económico” farão a propaganda apoiante desta ofensiva.
Mas o espinho na pata deste avanço leonino para caçar e liquidar as proteções constitucionais dos mais desfavorecidos esbarra com um problema lateral e simbólico: não me parece possível eliminar a palavra “socialista” do preâmbulo da Constituição.
Porquê? Porque não se trata de uma norma jurídica, mas da citação da explicação que a Assembleia Constituinte, no dia 2 de abril de 1976, resolveu dar aos portugueses sobre os objetivos do seu trabalho e que os partidos de Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e outros - com exceção do CDS - aprovaram.
O texto, só para recordar, diz isto: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.”
Mudar esta frase, esta afirmação produzida por um grupo de deputados num determinado espaço e tempo, não é possível - a não ser que se queira, mais uma vez, falsificar a história desse tempo, pondo na boca deles aquilo que eles não disseram.
Face a isso, para o revanchismo de direita, restaria outra solução: eliminar todo o preâmbulo. Mas isso já não seria uma revisão constitucional - seria a escrita de uma nova Constituição e uma mudança de regime. Aquilo que, até agora, apenas o Chega disse querer fazer.
Jornalista